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João Cezar de Castro Rocha

Professor Titular de Literatura Comparada (UERJ) e Cientista do Nosso Estado (FAPERJ). Autor de 14 livros; seu trabalho já foi traduzido para o espanhol, mandarim, italiano, francês, alemão e inglês.

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O Cativeiro da Babilônia e o aqui e agora de Elon Musk

Imagem de Bolsonaro, antes onipresente, foi substituída pela mescla de símbolos que emoldura a aquarela distópica do Brasil
07/05/2024 | 05h00

O teatro em cena

No domingo, 21 de abril, o teatro foi mais uma vez montado na Avenida Atlântica, em Copacabana. A convocação para o novo ato em apoio a Jair Messias Bolsonaro contou com reforço internacional.

A cruzada de Elon Musk contra o ministro Alexandre de Moraes deveria favorecer uma mobilização tão hiperbólica quanto a fortuna do proprietário do X.

No entanto, como ocorreu com os malogrados primeiros foguetes do SpaceX, as previsões otimistas não resistiram ao incontornável teste de realidade das ruas. Não mais do que 35 mil resistentes bolsonaristas compareceram à manifestação.

Se o número, por si só, confirma a popularidade do ex-presidente, ele também ilumina a encruzilhada na qual se encontra o bolsonarismo enquanto movimento político. O vídeo que eu mesmo filmei justifica a ressalva:

 

O registro visual é eloquente: o Leão de Judá, a estrela de Davi e o significante Israel ocupam idêntico espaço concedido à indefectível bandeira da seleção brasileira, à flâmula salazarista “Deus, Pátria e Família” e aos bonés patriotas.

Um detalhe impressiona e deveria deixar Bolsonaro com as barbas nada proféticas de molho.

Você se deu conta?

Não?

Então reveja o vídeo e volte para nosso bate-papo.

Pois é: você acertou no alvo! A imagem de Bolsonaro, antes onipresente, foi substituída pela mescla de símbolos que emoldura a aquarela distópica do Brasil dominado pelo nacionalismo cristão, oriundo da matriz norte-americana, e aclimatizado com êxito incomum nos trópicos entristecidos.

Proponho uma hipótese: o bolsonarismo parece ter encontrado uma sobrevida promissora no casamento aberto com Michelle Bolsonaro; por isso mesmo, o seu Jair começa a ser deixado de lado e será o último a saber – claro está.

O bolsonarismo deixará de ser fundamentalmente um movimento político autônomo, pois estará unido ao nacionalismo cristão por laços indissolúveis.

 Essa possibilidade abre caminho para uma leitura inesperada do momento que mais me impressionou durante a manifestação.

 O curioso mestre de cerimônias, combinação muito particular de locutor de rodeio e pastor da escola Malafaia de retórica estridente, anunciou o mito com euforia comovente.

Em São Paulo, na manifestação de 25 de fevereiro, associou-se Bolsonaro ao rei Davi, na projeção definidora da Teologia do Domínio. No Rio de Janeiro, se o texto veterotestamentário continuou sendo o horizonte de referência, passamos do Reinado de Davi ao Cativeiro da Babilônia.

Deslocamento sintomático e inquietante.

Vejamos.

Melhor: escutemos o mestre de cerimônias. Após recordar o castigo de Daniel, isto é, descer à Cova dos Leões por manter-se fiel a Deus, o locutor encenou o diálogo de Deus com seu profeta: “Pode descansar porque eu estou olhando por você, Bolsonaro!”

Daniel converteu-se em Bolsonaro sem sutileza alguma – ou não estaria no alto de um trem elétrico que complementava os discursos com trilha sonora cuidadosamente planejada. Desnecessário recordar que no sexto capítulo do livro de Daniel (especialmente nos versículos 17-25) nada de similar se encontra: a voz de Deus não se manifesta nesse episódio. Mas é certo que profeta sobreviveu incólume à provação e foi resgatado da Cova dos Leões: “Ao tirá-lo, não tinha nenhum arranhão, porque havia confiado em seu Deus”.[1]

Muito mais grave do que a citação equivocada é a subordinação de Deus ao mito! Porém, no fundo, tudo sempre esteve dito no ilógico lema bolsonarista: “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”.

Ora, como o tudo necessariamente abarca o todos, o bordão deveria prometer: “Brasil acima de todos, Deus acima de tudo”. Isto é, o país acima dos cidadãos individualmente considerados; Deus, como valor supremo. A simbiose do bolsonarismo com o nacionalismo cristão talvez leve à emenda da divisa: “Brasil acima de todos, Deus acima de tudo”.

Em todo o caso, como entender o trânsito de Davi a Daniel?

(Questão prenhe de questões que levariam longe. Mas nem tanto; na próxima coluna tentarei decifrar o rito de passagem.)

O poderoso homem estrangeiro

Uma resposta possível: a diferença radical dos contextos históricos explica a radical metamorfose: vamos do Reino de Jerusalém ao Cativeiro da Babilônia no espaço de apenas 1 mês no acelerado calendário vertiginoso da extrema direita.

Num plano imediato, o móvel da associação salta aos olhos. A situação jurídica de Boslonaro torna-se a cada dia mais delicada e a hipótese de prisão, em decorrência dos inúmeros crimes que cometeu, domina os cálculos políticos até mesmo de seus aliados mais fiéis.

Nesse horizonte, o Cativeiro da Babilônia deixa de ser um cenário exótico, fora de lugar e distante no tempo; pelo contrário, no instável aqui e agora do cenário político brasileiro, a imagem retorna com atualidade inesperada.

(A manipulação perversa do repertório bíblico por lideranças religiosas inescrupulosas é peça central na máquina de desinformação da midiosfera extremista.)

Num plano menos à flor da pele, a evocação adquire um significado assustador e que ajuda a decifrar a centralidade de um estrangeiro poderoso na fala dos oradores: Elon Musk.

O Cativeiro da Babilônia começou durante o reinado de Nabucodonosor II e passou por várias fases. Aliás, o livro de Daniel assim principia: “No terceiro ano do reinado de Joaquim, rei de Judá, Nabucodonosor, rei da Babilônia, chegou a Jerusalém e assediou-a”.[2]

Em 597 a.C., Jerusalém foi sitiada e ocorreu a primeira deportação de judeus; a dominação foi recrudescida em 586 a.C., por ocasião de uma revolta do Reino de Judá em busca de sua libertação. A repressão foi feroz, intensificou a deportação e levou à destruição do Templo de Salomão.

Enquanto durou o Segundo Império Babilônico, o exílio não foi superado. Na verdade, foi preciso esperar a derrota militar dos sucessores de Nabucodonosor II antes do retorno dos judeus.[3]

(Aqui, acredite se quiser, a imagem de Elon Musk se insinua no imaginário da extrema direita bolsonarista.)

Após prolongado período de decadência e dissensões intestinas, em 539 a. C., Ciro II, do Império Persa, conquistou a Babilônia. Só então o Cativeiro chegou ao fim. E não por um levante bem-sucedido, mas devido ao célebre Edito de Ciro, promulgado em 538 a.C.

Com perdão do anacronismo, o Edito é visto por muitos como um legítimo precursor da ideia de Direitos Humanos, pois libertava os escravos e assegurava a liberdade religiosa. Em consequência, autorizava o retorno dos judeus à sua terra.

De volta a Jerusalém, o Templo foi reconstruído como afirmação tanto da cultura hebraica quanto da liberdade recentemente reconquistada.

Pois bem: só nos falta atar as pontas — gesto que escapou ao desiludido Bento Santiago.

O Cativeiro da Babilônia chegou ao fim não por ação direta dos próprios judeus, porém pelo concurso do poderoso homem estrangeiro,[4] alçado pela força das armas a uma posição de poder.

Suspeito que minha leitura possa parecer um delírio — terei sido contagiado pelo estudo que faço? —, mas a adulteração da Bíblia, feita por líderes religiosos e por políticos da extrema direita — e quantas vezes a mesma pessoa usa os dois chapéus simultaneamente! —, tem produzido uma dissonância cognitiva coletiva que não tem paralelo no século 21 em latitude alguma da terra plana que nos rodeia, transformando o Brasil no laboratório transnacional do avanço do reacionarismo em escala planetária.

O poderoso homem estrangeiro, portanto, foi o motor da libertação. Nessa moldura de alienista, o Simão Bacamarte da manifestação, o deputado federal Gustavo Gayer, acreditou falar em inglês perfeitamente inteligível e ofereceu módicos serviços na Casa Verde do dono do X.

Jair Messias Bolsonaro, Nikolas Ferreira, Silas Malafais, e tutti quanti, esboçaram genuflexões retóricas em homenagem a Elon Musk. O político Silas, talvez sonhando com dízimos estratosféricos para o pastor Malafaia, evocou o seu nome com reverência aritmética: cifrões imaginários pairando sobre o cenográfico trio elétrico.

E, claro, o político-pastor vestiu o figurino do profeta para fazer coro aos ataques ao ministro Alexandre de Moraes, sugerindo que os míticos “Twitter Files” revelariam fatos decisivos — provavelmente em 72 horas. Ou o tempo necessário para a produção de deep fakes com ajuda de Inteligência Artificial?

A multidão, em geral morna, nada comparável ao frenesi que dominava as massas no 7 de setembro de 2021, explodiu de entusiasmo ante a promessa de libertação da “ditadura da toga”, graças à providencial intervenção do Ciro sem armas, mas com dinheiro para dar e comprar consciências — Elon Musk.

(Não se esqueça: o poderoso homem estrangeiro.)

Destaque-se, neste vídeo, dois aspectos inter-relacionados: o conteúdo nada religioso da fala de Silas Malafaia e a trilha sonora que pontua o discurso, a fim de orientar a recepção da militância. Volte o vídeo na altura dos 30 segundos. Eis o que você escutará:

“Agora eu vou falar o que eu acredito. Permitam-me usar a minha fé. Eu digo, Deus, em nome de Jesus, uma dessas três coisas vai acontecer no Brasil. (…)”

Ato falho que faria a felicidade de Sigmund Freud: “agora eu vou falar o que eu acredito.” Obrigado, pastor, pela sinceridade: mas e o que se disse antes foi somente jogo de cena, cálculo em busca de lucro? Permitam-me usar a minha fé.

A verdade é mesmo libertadora, pois, e o fato nunca esteve oculto, Malafaia não tem feito outra coisa desde o princípio de sua carreira. Eu digo, Deus, em nome de Jesus, uma dessas três coisas vai acontecer no Brasil.

Na sequência, menciona-se exclusivamente o universo político, preocupação obsessiva do pastor que transformou o púlpito em palanque eleitoral permanente. Em meras três frases, um milagre hermenêutico: involuntariamente Silas Malafaia confessou o uso da fé para manipulação política vulgar e oportunista.

Agora, a imagem rediviva do Cativeiro da Babilônia adquire pleno sentido. Sobretudo, esclarece o método de apropriação do Antigo Testamento pela extrema direita, em íntima associação com o nacionalismo cristão de líderes religiosos que abriram mão da espiritualidade em troca da promessa de um projeto político autoritário e fundamentalista.

(Líderes inescrupulosos — reitere-se. Nada a ver com as dezenas de milhões de evangélicos. Voltarei ao tema nas próximas colunas: cousas futuras.)

 A decifração da Esfinge fundamentalista exige a decodificação do emprego interessado, interesseiro até, de textos bíblicos. É o que proporei na próxima coluna ao discutir o vínculo inventado entre Jair Messias Bolsonaro e as figuras de Davi e Daniel.

Como entender a desfaçatez?

É o que veremos.

Até lá.

(Agradeço ao pastor Sergio Dusilek pelo diálogo e ensinamento constantes)

Notas:
[1] Bíblia do Peregrino. Luís Alonso Schökel (organização e notas). Daniel, 6: 24. São Paulo: Editora Paulus, 2a edição, 2006, p. 2147. Nas próximas colunas, citarei sempre essa edição.
[2] Daniel, 1: 1, p. 2129.
[3] Em Daniel 2: 31–45, o profeta realiza uma proeza: deve não apenas interpretar um sonho angustiante de Nabucodonosor II, mas também adivinhá-lo, pois o rei não o revelou! Entende-se o sobressalto: de forma cifrada, o sonho antecipava o declínio do Segundo Império Babilônico e a ascensão do povo judeu.
[4] Estrangeiro, sim, mas não se esqueça do capítulo 45 do livro Segundo Isaías, que esclarece a condição especial do rei persa: “Assim diz o Senhor a Ciro, seu ungido, / a quem conduz pela mão:”. Segundo Isaías, 45: 1–2, p. 1789.

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