Por Flávia Albuquerque — Agência Brasil
Há 40 anos, no dia 25 de janeiro de 1984, na Praça da Sé, centro da capital paulista, mais de 300 mil pessoas se reuniam durante o comício pelo voto direto para presidente da República. O evento não só deu visibilidade à campanha para a implementação do voto popular para a chefia do Poder Executivo, conhecida como Diretas Já!, como ficou marcado na história como símbolo de grande mobilização dos brasileiros, incluindo políticos, artistas, esportistas e trabalhadores de diversas categorias, contra a continuidade da ditadura civil-militar, que se estendia desde 1964.
Antes do evento da Praça da Sé, os comícios para chamar a atenção dos brasileiros para o tema começaram com pouca participação popular. O volume de participantes só aumentou com o maior apoio político e com o agravamento da situação econômica, no começo de 1984.
A campanha Diretas Já! foi iniciada em 1983 a partir da proposta de emenda constitucional apresentada pelo deputado Dante de Oliveira. A proposta alterava o sistema de eleição instituído pelos militares, no qual um colégio eleitoral formado por parlamentares, escolhidos pelo povo, elegia o presidente da República.
Os primeiros comícios das Diretas Já! ocorreram em março de 1983. Em junho, uma frente suprapartidária reuniu os governadores Leonel Brizola, do Rio de Janeiro, e Franco Montoro, de São Paulo, e o presidente nacional do Partido dos Trabalhadores (PT), Luiz Inácio Lula da Silva. Outros governadores se engajam ao movimento, entre eles Waldir Pires (PMDB), da Bahia; Roberto Magalhães (PDS), de Pernambuco; José Richa (PMDB), do Paraná; e Gerson Camata (PMDB), do Espírito Santo.
A mobilização contou com o apoio de várias instituições, entre elas, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), a União Nacional dos Estudantes (UNE), a Associação Brasileira de Imprensa (ABI), a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e a Central Única dos Trabalhadores (CUT). Quase todos os setores da sociedade, de todas as classes sociais, participaram. A mobilização popular levou milhares de pessoas aos cerca de 30 comícios organizados em 1983 e 1984.
BASES
Mesmo com a derrota, no dia 25 de abril de 1984, da emenda Dante de Oliveira, as bases para a democracia já estavam formadas. As lideranças capitalizaram a força do movimento para convencer o colégio eleitoral a encerrar a ditadura. Embora a mudança desejada não tenha ocorrido imediatamente, o movimento Diretas Já! sinalizou o início de uma transformação rumo à democracia no Brasil.
O ex-vereador e ex-deputado estadual de São Paulo Adriano Diogo (PT) era um dos responsáveis pela mobilização e por arrecadar recursos para a realização dos comícios. Ele conta que o movimento começou em 1983 com um pequeno evento na Praça Charles Muller, em frente ao Estádio do Pacaembu. Antes disso, o candidato a governador de São Paulo na época, Luiz Inácio Lula da Silva, havia sido derrotado nas primeiras eleições às quais o PT concorria, em 1982. Eleições essas que ocorreram depois da Lei da Anistia e permitiam que o eleitor escolhesse senadores, deputados federais e estaduais, vereadores e governadores.
“Quando acabou a eleição, estávamos em uma situação dificílima. Então, o José Dirceu foi procurar o governador Franco Montoro, montou o comitê pelas diretas e o primeiro ato pelas eleições diretas foi esse pequeno comício. Faço questão de dizer que o José Dirceu foi um dos grandes organizadores da campanha pelas Diretas”, ressalta Adriano Diogo, ao citar o ex-ministro-chefe da Casa Civil do primeiro governo Lula.
Diogo destacou que apesar de o governador liberar os comícios, a organização popular ficava toda por conta do partido e que para chegar à Praça da Sé foi um logo caminho, com muito trabalho e articulação com os outros partidos que aderiram.
“Era um momento muito bom, porque ao mesmo tempo em que tínhamos medo de que a ditadura voltasse e nós fôssemos reprimidos, porque já tínhamos um passado de perseguição, tínhamos uma esperança muito grande. E quando falávamos de eleições diretas para presidente, a população não acreditava que ia acontecer, mas recebia muito bem. Foi um período muito interessante”, lembrou.
DEMOCRACIA CORINTHIANA
O mesmo orgulho por ter participado de um momento tão intenso da história do Brasil é expresso pelo ex-diretor de futebol do Sport Club Corinthians Paulista, Adilson Monteiro Alves. Ele, que já era ligado à política desde a juventude, ao assumir o cargo quis levar consigo a consciência política aos integrantes e jogadores do time. Foi então que nasceu a Democracia Corinthiana. Com adesão de atletas de peso como Wladimir, Sócrates, Casagrande, Zé Maria, Zenon, entre outros, o futebol serviu como instrumento para engrossar a campanha pelas Diretas Já e pela volta da democracia no Brasil.
“Quando eu fui convidado para ser diretor de futebol, eu fui com minha experiência política e disse aos jogadores que não era só futebol, que nós estávamos vivendo uma ditadura e tínhamos que participar disso, que eles eram pessoas públicas e o que diziam era ouvido. Aos poucos eles foram entendendo e em 1982 nós participamos da primeira eleição direta para governador e escrevemos na camisa “Dia 15 vote”.
A estreia do uniforme foi em jogo contra o América, no Campeonato Paulista, transmitido pela televisão em uma quarta-feira à noite. Mais tarde, houve ainda a faixa histórica que estampava a frase “Ganhar ou perder, mas sempre com democracia”, exibida pelo time na final do jogo que definiria o bicampeonato paulista em 1982/ 1983.
“A Democracia Corinthiana foi muito importante porque nós fomos a voz do esporte na luta contra o autoritarismo. Rompeu as fronteiras do conservadorismo e por isso enfrentou todo tipo de adversidade. E foi sensacional participar do comício. Tivemos Belchior, Fafá de Belém e quem encerrou foi Geraldo Vandré, cantando Para não dizer que não falei das flores (também conhecida como Caminhando), enquanto todos nós estávamos de mãos dadas no palanque. Foi emocionante”.
DIVERSIDADE
A professora de história Mary Zanin foi ao comício de 25 de janeiro de 1984 com duas amigas e ressaltou que as três só perceberam a grandiosidade do ato ao observarem tantas categorias de trabalhadores, sindicatos e partidos políticos misturados na Praça da Sé.
“Eu já participava das greves e assembleias dos metalúrgicos em 1980, 1981, acompanhando meu pai e meu irmão e aí fui começando a entender o movimento que mexia muito comigo, tanto que depois fui estudar ciência sociais”.
Ela lembrou que o regime militar já estava estremecido e que as eleições anteriores para governador já haviam mostrado que o povo estava começando a se mexer e a se reconhecer como cidadãos com direitos, inclusive de votar. Para Mary, além da questão política havia a questão econômica, já que esse setor também não ia bem.
“O trabalhador e as pessoas mais pobres estavam todos descontentes com a economia. Algumas pessoas não entendiam a ditadura e a política, mas percebiam que estavam sem dinheiro, que tinha uma inflação alta e tudo isso levou a essa busca pela democracia”.
Mary recorda que ao começar a lecionar história ficava emocionada ao abrir os livros didáticos no capítulo que tratava desse período e pensar que estava lá participando e contribuindo para a conquista do direito ao voto para presidente. “É um sentimento bom de ter contribuído e de continuar contribuindo, porque continuei participando e, como professora, sempre esclarecendo. É emocionante ter feito parte disso”.
Naquele período, a jornalista Rosana Córnea tinha 21 anos, era bancária, estava estudando jornalismo e acompanhou a efervescência do surgimento do movimento sindical e pelas Diretas Já com muita esperança e crença de que as coisas iriam mudar a partir dali. Ela participou do comício de janeiro e do seguinte, em abril. Apesar da frustração pela não aprovação da emenda Dante de Oliveira, ela reconhece o avanço político no país, porque apesar de as eleições de 1985 para presidente da República terem sido indiretas, em 1989 ela teve a chance de votar pela primeira vez para presidente.
“Foi uma época muito interessante e importante de viver, tanto para a formação profissional quanto como cidadã. Não era uma mobilização só da esquerda, era mais amplo, percebíamos o envolvimento até de quem não tinha partido nenhum ou não participava de nenhum movimento específico, mas que foi acreditando no exercício da democracia, da cidadania, por achar importante poder escolher o presidente do país. Era muito bonito ver aquele monte de gente e com bandeiras do que quisessem”, pontuou.
Ao relembrar e comparar aquele período com os dias atuais, Rosana ressalta que a sensação é a de que nunca podemos perder o desejo de lutar pela democracia, que deve ser um exercício permanente e necessário.
“Basta ver que temos observado a democracia sendo ameaçada constantemente aqui no Brasil, em países da América do Sul, na América do Norte e em outros continentes. Hoje eu vejo que aquilo foi muito importante para eu continuar exercitando tudo isso”.
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