Não é metáfora e muito menos eufemismo. É corpo mesmo. Cadáver que apodrece jogado em um canto qualquer. Corpo que não interessa a ninguém que não seja um filho, um tio, uma namorada, um amigo, um pai… uma mãe. Corpo que não interessa ao Estado, ao poder constituído, a instituição nenhuma. Corpo que é ofertado em troca de qualquer barganha política ou financeira ou de poder. Estes são os “desimportantes” e estão em toda parte.
Aqui, neste território brasileiro conflagrado e ferido por colonizações e seus subprodutos, são existências jogadas no lixo de forma invisível e que valem, no máximo, uma ou duas notas de jornal quando muito.
Esqueçam as dimensões religiosas que buscam equalizar o grau de importância dos seres humanos. Todo mundo sabe: Nem toda vida é vida de verdade na lógica deste país. Não somos todos iguais e ponto. Nos últimos dias este fato gritou, saltou das telas de televisão que repetem ao infinito cenas de guerras em outras terras, dando aquela tal notinha de jornal citada acima para os dramas locais. A piedade acontece se o corpo está numa distância relativa e segura.
É esta dor pelo corpo mais distante e desconectado da realidade imediata, que faz um vizinho do meu bairro na zona norte do Rio, há duas ruas de uma das muitas comunidades violentas desta cidade, estar em manifestações apaixonadas com símbolos de outra pátria por toda a varanda de seu imóvel, mas incapaz de clamar por alguma paz real para o seu próprio entorno. Para ele, os corpos que ali vivem são apenas isto, corpos.
Os que fenecem numa guerra surda em que não se sabe quem é quem, vão se acumulando no imaginário até fundirem-se às paisagens urbanas. Não valem o esforço de se saber o nome, os anseios, a história. Tão pouco são importantes no Brasil os infantes e jovens vivos que ficam uma semana, dez dias ou um mês sem aulas por conta de invasões por terra de tropas que atiram para matar. Não raro são estes infantes e jovens que tombam sem nem ao menos terem se alistado no combate.
As falas de que “favela é potência” se perdem na crueza da falta da cidadania concretizada na escassez de saneamento, de transporte público, de serviços básicos que não passem antes pelas mãos de um “dono” que não é o estado ao qual estas pessoas pertencem.
Basta ir um pouco mais distante dos centros financeiros e de turismo da cidade do Rio de Janeiro, por exemplo, para encontrar guichês de trens urbanos controlados por tráfico ou milícias. Um serviço essencial da cidade em mãos de alguém que foi eleito pela lei do mais forte da selva nossa de cada dia.
O cidadão e a cidadã comuns vivem na corda bamba que separam facções organizadas e desorganizadas de crimes, lutando para se tronarem visíveis, num mundo que nãos os enxerga porque não lhes dá importância fora dos períodos eleitorais.
O ciclo se completa quando as câmeras apontam para ele ou para ela clamando por justiça e vestindo uma camiseta com o rosto de alguma saudade, diante da impossibilidade de trazer de volta seu ente querido perdido nesta inglória e randômica batalha. Os “desimportantes” do mundo inteiro, em diferentes graus, vivem este ciclo que termina com o rosto de algum deles como resumo da dor de um grupo negligenciado.
A quebra desta ciranda que produz corpos para serem desimportantes está em tecnologias antigas e acessadas por alguns, quando tudo se torna insuportável: o apoio no coletivo que enxerga cada um e cada uma como únicos, o resgate de técnicas que mantiveram vivos os corpos do passado, a transmissão de conhecimento para novas gerações, a produção de saber e beleza que alivie o peso e assinale às existências no planeta Terra.
As mudanças se operam fora dos ciclos que não têm interesse nelas. As revoluções acontecem pelas mãos e urgências … dos corpos supostamente desimportes.
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