José Cícero, Bianca Muniz, Gabriel Gama, Bruno Fonseca e Danilo Queiroz – Agência Pública
Neste ano, as comemorações para o aniversário de 20 anos de Lívia Lemos foram à luz de velas: literalmente. Ela e sua família, moradores do bairro de Jardim Ângela, na Zona Sul de São Paulo, ficaram sem acesso regular à energia elétrica por quase uma semana. O apagão na casa de Lívia começou logo após o vendaval histórico que atingiu São Paulo, na sexta-feira de 3 de novembro. Nos dias seguintes, ficaram completamente sem energia. De terça em diante, a luz voltou, mas de forma irregular.
“Essa não é a primeira vez que isso acontece. Só neste ano já ficamos sem luz umas quatro vezes”, relata a estudante. “Lembro que, desde que eu era criança, na minha rua faltava energia constantemente. Os moradores do bairro vinham até a mercearia do meu pai para comprar vela. Perdi a conta de quantas vezes vendemos todo o estoque”, relembra.
O caso de Lívia, segundo a Agência Pública apurou, é comum entre moradores do Jardim Ângela — ele é o distrito com a maior frequência de falta de luz em São Paulo. Foram quase nove interrupções em média nos últimos doze meses, isso sem contar o apagão que ocorreu após o vendaval da sexta-feira, 3 de novembro. Os dados são da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel).
O cálculo é feito a partir da média de interrupções no fornecimento de energia elétrica em uma área. Ou seja, há pontos no Jardim Ângela onde a luz acabou mais de nove vezes, em outras, menos. A média final leva em consideração todas essas interrupções, para chegar a um valor que represente todos os pontos onde faltou luz.
Além de ser o distrito com a maior frequência de cortes, o Jardim Ângela também é onde a luz faltou por mais tempo: em parte do distrito, as interrupções de energia ao longo do ano duraram uma média de 15 horas; em outras áreas, os cortes duraram em média 9 horas.
A falta de luz no Jardim Ângela revela a desigualdade do fornecimento de energia na cidade de São Paulo. Para se ter uma ideia, bairros no Centro da cidade tiveram menos cortes e que duraram menos tempo. Bela Vista, Consolação e Jardim Paulista, por exemplo, tiveram uma média de interrupção de energia no último ano de apenas 45 minutos.
Todos os bairros analisados são atendidos pela Enel São Paulo. A empresa assumiu a estatal Eletropaulo Metropolitana, que foi privatizada em 1998 e leiloada em 2018, quando foi arrematada pela Enel. Além da capital, hoje, a Enel também atende municípios da região metropolitana, como Cotia e Osasco, e os estados do Rio de Janeiro e Ceará.
A reportagem questionou a Enel sobre a falta de luz na periferia. A companhia respondeu que havia religado o fornecimento de energia “a praticamente todos os clientes impactados na última sexta-feira [9 de novembro]”, mas reconheceu que ainda havia técnicos trabalhando na região de Cotia e Embu para clientes que ainda estavam sem luz. A empresa acrescentou que seguia atuando “para normalizar cerca de 30 mil registros de falta de luz originados nos dias seguintes à tempestade”. Leia a resposta completa da Enel aqui.
A Pública também questionou a Prefeitura de São Paulo sobre a falta de energia nas periferias e o aterramento de cabos. A assessoria informou que “o SP sem Fios não tem custos para a prefeitura” e que “cabe à Secretaria Municipal das Subprefeituras fazer o cronograma e agendamento do trabalho das empresas”. Também informou que mais de 62% do programa de aterramento de cabos já foi concluído na capital paulista (resposta aqui), mas disse que os demais questionamentos cabiam à Enel.
Desde o apagão, Enel e o prefeito da cidade, Ricardo Nunes (MDB), estão em guerra sobre a responsabilidade pela falta de energia. À CNN, Nunes chamou a fala do presidente da Enel, Max Xavier Lins, de mentirosa. Reportagem da Pública mostrou que, até outubro, a Prefeitura de SP investiu menos de 20% do valor orçado para prevenção em áreas de risco.
Prioridade da Enel não são as periferias, dizem moradores e especialista
Ariosvaldo Ribeiro, pai da aniversariante Lívia, costuma trabalhar na sua mercearia até o início da madrugada. No entanto, com o bairro sob a escuridão, ele teve que baixar as portas no início da noite. “Diminuiu o movimento, porque os meus clientes são pessoas que estão chegando do trabalho. Sem luz, às 18h, não dava mais para trabalhar. Eu baixava as portas, subia para varanda e ficava olhando tudo escuro”, relata. Segundo o comerciante, além de precisar diminuir o atendimento aos clientes, ele perdeu pouco mais de R$ 1 mil em produtos que precisavam de refrigeração.
Durante os cinco dias que ficou totalmente no escuro, ele e sua filha precisaram se virar para ter acesso à energia elétrica. “Meu pai carregou o celular na casa de um vizinho, que mora em algumas ruas próximas da nossa. Eu preparei comida em uma quantidade que não sobrasse, porque não tinha como refrigerar depois”, explica Lívia.
Assim como os outros moradores da redondeza, ela espera receber um desconto na conta de energia elétrica do mês — ele costuma pagar R$ 600 apenas da mercearia. “Fiquei com a impressão de que, por meu bairro estar numa região periférica, a luz demorou muito mais para retornar. A gente ligou inúmeras vezes para a Enel. Resolveram, mas ainda segue com idas e vindas da luz”, reclama.
A impressão de Ariosvaldo — de que bairros na periferia não foram prioridade para o retorno da energia — está correta, segundo avaliação de Ildo Sauer, membro da Divisão Científica de Planejamento, Análise e Desenvolvimento Energético do Instituto de Energia e Ambiente da Universidade de São Paulo (IEE-USP) e ex-diretor da Petrobras.
“A Enel, com suas equipes precárias, atendeu primeiro as regiões que gritam mais alto e tem mais dinheiro e poder econômico. Só depois é que foram cuidar da periferia”, avalia Sauer. Para ele, um dos problemas é a forma como foi feita a privatização da empresa.
“Antigamente, havia uma regulação de comando e controle: as empresas eram obrigadas a apresentar seus planos de investimentos e garantir a melhoria da qualidade. Agora, esse controle é feito pela Aneel, que usa mecanismos indiretos de performance e eficiência, com estudos estatísticos [à distância]. A estatística não diz como os transformadores do Jardim Ângela vão funcionar, não entra no detalhe da qualidade do atendimento em termos socioeconômicos. Os investimentos que a Enel faz são os mínimos necessários para atender aos critérios da Aneel, até porque o governo italiano, que é o principal acionista da empresa, pressiona para obter dividendos e lucros, fazendo com que ela invista cada vez menos no Brasil”, explica Sauer.
A receita operacional líquida da Enel passou de R$ 4,6 bilhões no segundo trimestre de 2023, um aumento de 6,9% comparado ao mesmo trimestre do ano passado. Os dados são dos relatórios da empresa para acionistas.
Neste ano, até setembro, a Pública apurou que consumidores atendidos pela Enel no Estado de São Paulo passaram por mais de 216 mil interrupções na rede elétrica. O número leva em consideração apenas os clientes finais, como residências e indústrias. A maior parte dessas interrupções (97%) não havia sido avisada. Só nos conjuntos que atendem a capital, foram mais de 170 mil interrupções no período.
A reportagem também apurou que, na cidade de São Paulo, 19 áreas de clientes da Enel tiveram uma média de cortes de energia acima do limite definido pela Aneel. Essas áreas, chamadas de conjuntos de unidades consumidoras, atendem total ou parcialmente 50 distritos do município — e a maioria deles fica na periferia.
Quem fica sem luz pode receber uma compensação financeira, quando a interrupção não foi programada. A regra da Aneel é a seguinte: quando o tempo de interrupção e a frequência ultrapassam os limites estabelecidos para cada região, a distribuidora dá um desconto na conta de luz do consumidor, que é creditado em até dois meses após a apuração da interrupção. Os valores limite são definidos por meio de consulta pública durante a revisão tributária de cada distribuidora.
De acordo com a Aneel, até o mês de agosto deste ano, a Enel já concedeu cerca de R$ 63 milhões de reais em descontos na fatura.
Sauer explica que, além das quedas de energia, as periferias de São Paulo também passam por uma flutuação da voltagem. Ou seja, uma variação da tensão elétrica que chega às tomadas, que fica abaixo ou acima do tolerável. Isso prejudica o rendimento de diversos equipamentos, especialmente geladeiras e aparelhos de ar-condicionado.
“Redes elétricas mais antigas, de regiões mais populosas e de maior consumo têm merecido mais atenção da concessionária, porque elas têm maior poder de barganha e de influência. À medida que a rede se expande para a periferia, há uma tendência de aumento da carga, conforme a população periférica cresce, mas as redes não são modernizadas”.
Ele defende que uma solução seria criar um comitê municipal de energia em São Paulo com a presença permanente dos cidadãos em discussões com a Enel, que obrigaria a empresa a prestar esclarecimentos à sociedade.
Moradores precisaram parar caminhão da Enel para ter energia de volta
Era por volta das 11h de quarta-feira, 8 de novembro, quando moradores da rua das Galhardas, no Jardim Santa Zélia, abordaram um caminhão da Enel. A região, que também fica no Jardim Ângela, na zona sul de São Paulo, estava a cinco dias sem energia elétrica.
“A gente só deixou eles saírem depois que resolveu”, conta o aposentado Francisco Cristino, de 69 anos. Desde sexta passada, os moradores solicitavam assistência à empresa, mas não eram atendidos. Em menos de duas horas após pararem o caminhão, todas as casas da rua estavam com as luzes acesas.
Após cinco dias no escuro, moradores da rua das Galhardas não deixaram mais um caminhão da Enel passar por eles: pararam o veículo e exigiram o atendimento. A luz, finalmente, voltou. “Se os moradores não tivessem parado o caminhão, não tinha energia até agora”, argumentou Ozanete de Souza, de 56 anos.
A rua das Galhardas é uma via estreita, onde só é possível passar um carro por vez. Ela dá acesso à diversos becos, e foi a última do bairro a ter a energia religada. Para a auxiliar de limpeza Patricia Pereira, 51 anos, a única explicação para a demora foi o “desdém da empresa por acharem que a rua é uma viela”, diz.
Os moradores e comerciantes tiveram prejuízos financeiros. Ozanete mora numa viela onde residem mais outras 13 famílias.“Perdemos mistura, perdemos verdura e muita comida”, conta. Paulo Henrique da Silva, 53 anos, relata que na semana que faltou energia, havia recebido o vale refeição da empresa. Com isso, ele comprou R$ 325 de carnes e ovos para o mês, que estragaram por falta de refrigeração.“Deu dó jogar tudo no saco de lixo, a salsicha, a linguiça, a caixa de ovo, carne. Agora já foi”, desabafa.
A reportagem questionou a Enel sobre a falta de luz na rua das Galhardas e se há algum ressarcimento para os moradores. A empresa ainda não respondeu.
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