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Eliana Alves Cruz

Eliana Alves Cruz é carioca, escritora, roteirista e jornalista. Foi a ganhadora do Prêmio Jabuti 2022 na categoria Contos, pelo livro “A vestida”. É autora dos também premiados romances Água de barrela, O crime do cais do Valongo; Nada digo de ti, que em ti não veja; e Solitária. Tem ainda dois livros infantis e está em cerca de 20 antologias. Foi colunista do The Intercept Brasil, UOL e atuou como chefe de imprensa da Confederação Brasileira de Natação.

Dengue, racismo e outras doenças

O carnaval de um país doente
08/02/2024 | 11h00

Tenda de acolhimento e atendimento para casos suspeitos de dengue na cidade de Ceilândia, região administrativa do Distrito Federal. Foto: Fabio Rodrigues-Pozzebom/ Agência Brasil

A crônica das duas últimas semanas pôs o Brasil no leito do hospital. A dengue resolveu dar o ar da graça em 2024 obrigando vários estados a decretarem estado de emergência. Distrito Federal, Rio de Janeiro, Minas Gerais, São Paulo, enfim, o país na caçada do mosquito que, entra ano e sai ano, não sai do protagonismo dos verões nacionais. Na última quarta (7/02), o Rio de Janeiro anunciou o primeiro óbito. Um homem de 45 anos, na região da favela da Maré. Aqui começamos a nossa reflexão.

Segundo as notícias, o homem já estava desnutrido, logo, quando seu organismo deu de cara com um agente que provoca desidratação profunda, não resistiu. É nesta encruzilhada da falta de saneamento, condições de vulnerabilidades extremas e carências de políticas públicas que garantam acesso pleno à prevenção e tratamentos, que moram os efeitos nefastos da desigualdade, da exclusão e (vejam só) do racismo ambiental.

Ninguém vive em condições indignas no tocante ao saneamento básico porque quer. Ninguém se mantém nesse lugar ao ponto de colocar em risco à sua e a vida de outras pessoas por livre arbítrio. Uma série de condicionantes vão empurrando um contingente populacional gigante para este estado de coisas. São séculos do lado de fora da festa da educação formal e ambiental, dos serviços públicos básicos, do tempo para cuidar da vizinhança, da casa, de si.

Além de todos estes atravessamentos, que por si só já são trabalho demasiado para uma vida acumulada de erros, existe mais um que cruzou o meu caminho nestes primeiros dias de fevereiro.

Já disse a saudosa colega jornalista Glória Maria: “Ninguém blinda preto de racismo”. O que ela quis dizer é muito simples. Não importa se uma pessoa negra tem ou não dinheiro, fama, escolaridade, o que seja. Quando o racismo que está entranhado na sociedade decide operar, ele não encontra obstáculos. E foi o que aconteceu com o meu filho, diagnosticado com dengue e hospitalizado esta semana.

Ele, um jovem de 24 anos, deu entrada na emergência de um bom hospital particular sentindo-se muito mal. O médico olhou e, após os exames de sangue, constatou-se a dengue, mas não apenas. Como uma das consequências da doença, a desidratação era grande e suas plaquetas (elemento do sangue que garante a coagulação) estavam muito baixas. Já era o caso de internação, mas um “você é forte” mandou-o de volta à casa.

Não se recuperou. Piorou muito, a desidratação se agravou e as plaquetas desceram a níveis muito preocupantes. Voltando ao hospital, precisou ser internado quase no limite de uma transfusão. Mais um ou dois dias de “você é forte” e…

Este é um tema estudado por vários pesquisadores. Corpos negros são vistos como fortes ao ponto de aguentarem toda a dor, toda a sorte de dilaceração e isto se verifica de forma muito aguda no sistema de saúde. Em todo ele.

Uma parcela grande de profissionais está impregnada desta noção de “força” que vem de um passado de serviços braçais e escravização. Isto é dado de pesquisa e faz com que mulheres recebam menos anestesia em partos, sofram violências obstétricas variadas, tenham suas dores minimizadas e invisibilizadas. Homens negros também sofrem todos os pré-julgamentos desde o primeiro minuto em um hospital. Junta-se a isto uma epidemia e o cenário é fácil de visualizar.

Como já disse aqui em outra ocasião, a população negra e pobre é sempre colocada na “vanguarda do problema”. São os primeiros corpos que tombam, quando não são os únicos.

A dengue é uma doença que conta com a falta de consciência e comprometimento com a coletividade para evoluir, pois não nos bastamos. É preciso ficar atento à higiene do nosso espaço, mas dependemos que todo o entorno também cuide dos seus territórios além de, obviamente, os entes públicos. Não dá para brincar no “bloco do eu sozinho” numa epidemia.

Felizmente, no caso do meu filho, o acesso à hospitalização de qualidade aconteceu por conta de uma família e uma coletividade atentas, insistente e ciente dos seus direitos. Afinal, já disse o rapper Emicida na música Principia: “Tudo o que nós tem é nós”. Tudo terminou bem, mas como também disse ele mais adiante na mesma letra: “Enquanto a Terra não for livre, eu também não sou”.

Faça a sua parte.

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