Nesta semana tivemos um feriado importante, o da Proclamação da República pelo Marechal Deodoro, em 15 de novembro de 1989. As comemorações são também, no entanto, estímulo à reflexão. Afinal, o que estamos comemorando? O que há a comemorar ou a lamentar nesta data? O golpe de Estado que inaugurou a República instaurou uma República restritiva, formal e sem participação popular, a qual depois foi chamada de República velha, onde, no máximo, 5% da população tinha direito a voto. Mesmo assim, os resultados eram manipulados a bico de pena nas células de papel. A República começa, portanto, como uma perfeita continuidade do passado com roupagens modernas.
A novidade no caso é o voto popular substituindo à vontade divina como o fundamento último da legitimidade da ordem social, concepção que se espraiou rapidamente por todo o Ocidente durante o século XIX. A República Velha e sua elite de grandes proprietários reconhece o novo princípio legitimador, mas o restringe ao máximo ao ponto de torná-lo, na prática, irrelevante. Essa será, aliás, a estratégia da elite brasileira durante toda a nossa vida republicana. O grande inimigo desta elite é a soberania popular. Como a nova concepção não pode ser negada, por conta de sua aceitação global e generalizada, então ela tem que ser vivida como enfeite de modernidade num país com relações sociais retrógradas.
Ao mesmo tempo, essa concepção, ainda que hegemônica, não foi a única tradição republicana existente entre nós. Getúlio Vargas vai inaugurar uma tradição que visa aprofundar a inclusão popular num país com desigualdade abissal. E isso foi feito de tal modo que ainda não foi repetido entre nós. Não só as bases do processo de industrialização da economia e da modernização do Estado brasileiro foi o fulcro do Varguismo. Também foi com Vargas que se deu a única “revolução simbólica” da sociedade brasileira, sob a forma de uma crítica antirracista que foi a mais profunda que o país viveu.
É com Vargas que temos, pela primeira vez, a celebração da origem africana – ao contrário do desprezo elitista que era e vai continuar depois sendo a regra – como uma forma de afirmação coletiva da dignidade social de mestiços e negros pobres. A partir daqui seremos o país do samba e do futebol como praticado pelos negros como Leônidas da Silva. Esse aspecto simbólico é fundamental, porque não existe mudança social nem aprendizado coletivo sem ele. Obviamente Vargas não construiu uma “democracia racial”, que teria exigido um esforço geracional amplo e profundo, mas ele conseguiu interditar o racismo explícito da vida brasileira. A passagem do racismo aberto e violento para o racismo envergonhado é uma vitória importante, ainda que, obviamente, não baste.
Getúlio cria o “racismo cordial” brasileiro, ou seja, a partir de agora a elite republicana vai ter que se utilizar de outras ideias que não o racismo aberto para criminalizar a participação popular da maioria mestiça e negra. O racismo vai ser exercido sob outras vestes, como por exemplo, a ideia de povo corrupto eleitor de corruptos que passa a ser a justificativa de todos os golpes de Estado a partir de Vargas. O objetivo do tema da corrupção é criminalizar, humilhar e excluir exatamente os mesmos setores que eram oprimidos pelo racismo racial aberto que vigorava antes de 1930.
Como a classe média branca se vê como europeia – especialmente no Sul e em São Paulo – e a elite paulista se vê como americana, pela transmutação do bandeirante em um equivalente funcional do pioneiro ascético americano, então o “povinho corrupto” digno de desprezo passa a ser os mestiços, negros e pobres, jogados na lata de lixo como inconfiáveis e imprestáveis. O tema da corrupção como central para explicar o país, vai possibilitar transformar o racista de classe média e alta em defensor da moralidade pública. E qual racista não acolhe de bons olhos essa ilusão? De resto, isso também permite uma distinção social pela suposta oposição entre alta moralidade dos brancos e ricos e a baixa moralidade dos pobres. Como a esfera moral é a dimensão mais importante do espírito humano, quem quiser humilhar alguém vai ter que criar uma suposta não-confiabilidade e desonestidade do indivíduo ou do grupo como o dado fundamental.
Lula reedita o Varguismo sem o elemento simbólico e cultural que sequer é reconhecido na sua importância pelas forças democráticas ou de “esquerda” no país. Isso se deve ao corte intencional, patrocinado pela elite paulista e seus intelectuais, de qualquer validade ao Varguismo pela pecha de ditador, que é como ele é conhecido por 90% dos intelectuais e jornalistas do país. A pecha evita o processo de aprendizado e continuidade, enfraquecendo as forças populares e favorecendo a cultura de golpes de Estado toda vez que alguém eleito pelo povo ascenda ao poder. Sob o ponto de vista da elite, o Estado tem que continuar sendo controlado por ela, posto que o Estado é a base de sua riqueza e poder. Quando se tem toda a mídia na mão pelo poder do dinheiro, se pode controlar o acesso a todo conhecimento e informação relevante. A fórmula resumida da dominação republicana brasileira é: a elite saqueia e a sua imprensa mente.
A República brasileira vive dessa oscilação entre um projeto elitista hegemônico de controle do Estado, como o controle do Banco Central hoje em dia, que permite o saque da população para a riqueza de uma meia dúzia improdutiva, e um projeto popular de se criar um país rico e pujante para a maioria. Como a “esquerda” não percebe a importância do convencimento e esclarecimento do público como o fundamento principal de qualquer mudança social efetiva, então a nossa República tende a ser formal e para inglês ver ainda por muito tempo.
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