Eu assisti, embevecido, o maravilhoso filme “Dias perfeitos”, último trabalho do diretor alemão Win Wenders. Gosto sempre de ler críticas dos filmes preferidos, mas não vi nenhuma crítica até agora que tenha levado em conta o aspecto político da obra. Isso se dá pela sofisticação de Wenders, que faz uma crítica contundente à nossa sociedade contemporânea, a partir da cuidadosa reconstrução de um cotidiano aparentemente ordinário. “Dias perfeitos” é um estudo cinematográfico da vida cotidiana de uma pessoa comum, Hirayama, um limpador de banheiros públicos em Tóquio.
O trabalho do protagonista é menos até do que um trabalho comum, enquanto lavar banheiros, assim como quem recolhe o lixo, é um trabalho estigmatizado na nossa sociedade. Hirayama, no entanto, não se sente humilhado, apesar da vergonha da família — com exceção de uma sobrinha — pelo trabalho que exerce. Ao contrário, ele o faz com dedicação nipônica e do melhor modo possível. E se orgulha dele. Aqui está o primeiro vetor de crítica do filme, nesse ponto dirigido à crença meritocrática dominante que diz que quem ganha mais e exerce trabalhos prestigiosos é “melhor” do que as pessoas que trabalham em coisas comuns ou estigmatizadas como Hirayama.
‘Dias perfeitos’ revela que o valor humano das pessoas não é dependente desses sinais externos de sucesso. Hirayama é gentil, atento ao que importa e amante das artes. O filme nos ensina, portanto, que ele é muito mais sofisticado e “melhor” do que qualquer dos engravatados das Farias Lima da vida.
Mas a crítica ao mundo competitivo que criamos para nós mesmos não para aí. No seu tempo livre, o limpador de banheiros é um atento fotógrafo amador e parece ter parado no tempo com suas fitas cassete para ouvir música. Ele é especialmente atento a tudo que é passageiro e momentâneo e gosta de captar o instante vivido na sua inteireza. Ou seja, ele é o nosso oposto perfeito, na medida que renega o hedonismo e consumismo que perfazem o núcleo do mundo em que vivemos. Quem não atenta ao momento vivido literalmente não vive. E todo o estímulo que recebemos se dirige ao futuro, à acumulação, ao que vai acontecer, o que nos tira da vida presente e faz com que nos percamos de nós mesmos.
A política em ‘Dias perfeitos’ não é partidária nem óbvia. Mas é um filme mais político do que imensa maioria dos filmes explicitamente políticos. Afinal, não existe nada mais político do que denunciar as próprias pré-condições existenciais de nossa vida em qualquer sociedade moderna. Uma sociedade construída para a competição social de todos contra todos, o que, por sua vez, implica em competição burra, humilhação de muitos, consumismo e perda de sentido da vida. A grandeza de Wenders é conseguir desmascarar o lado sombrio da personalidade típica do nosso tempo pela comparação com alguém tido como desclassificado e estigmatizado pelo que faz.
A crítica do mundo presente pela comparação com um passado idealizado é um dos topos recorrentes do cinema e de outras artes. Jaques Tati fez isso com graça, assim como John Houston e muitos outros. Mas Wenders não idealiza nenhum passado. Com a ajuda de Hirayama, ele nos convida a olhar no espelho e ver o que nos tornamos. E a visão que se descortina não é boa. Ao invés de nos distrair de nós mesmos, o filme nos leva a refletir sobre aquilo que perfaz o nosso eu mais profundo. É nesse sentido essencial e existencial que Win Wenders faz uma impecável crítica política do mundo contemporâneo.
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