A última semana do ano é um tempo de reflexão tanto individual quanto coletivo. É quando saímos do transe das tarefas do dia e dia que nos consomem e refletimos sobre nossas vidas. Como avaliar a vida social brasileira no último ano? Na dimensão política há várias coisas a comemorar e algumas para criticar.
Em primeiro lugar, há que se comemorar a derrota do candidato infame que certamente iria destruir os últimos rincões da resistência democrática brasileira, especialmente o STF e parte da imprensa, e implantar uma ditadura de fato com apoio dos militares e de parte substancial da elite brasileira. Esse foi o primeiro milagre deste primeiro ano do terceiro governo de Lula.
Certamente o trabalho de Flávio Dino a frente do Ministério da Justiça foi paradigmático para a defesa da democracia e para o julgamento da tentativa de golpe em 8 de janeiro de 2023. Sílvio Almeida na pasta dos Direitos Humanos foi outra grata surpresa. A volta de recursos para a cultura, para o SUS, e para programas sociais para os mais pobres foi outro aspecto decisivo e importante.
No entanto, outros aspectos são preocupantes para 2024. O aprofundamento do projeto conservador de esvaziamento do Executivo e do presidencialismo é a maior preocupação de todas. O processo iniciando por Eduardo Cunha em 2015, ao tornar obrigatórias as emendas parlamentares individuais, foi aprofundado em 2019 com a obrigatoriedade das emendas de bancada, e, agora, a redução do poder do presidente em usar o tempo de pagamento das emendas em seu favor – que permitia a barganha do Executivo em votações importantes – foi também implementada recentemente.
Isso significa que o núcleo do projeto do golpe de 2016 continua a todo vapor. O objetivo mal disfarçado é esvaziar o Executivo nas suas capacidades de implementação de um projeto social coletivo em nome da fragmentação eleitoreira parlamentar de um Congresso ultra-conservador. Já estamos vivendo uma espécie de semiparlamentarismo ou de semipresidencialismo. A ideia por trás deste desenvolvimento é mitigar a soberania popular na medida em que o presidente é aquele que incorpora na sociedade brasileira os desejos de mudança da estrutura social injusta. Esvaziar este espaço é esvaziar a democracia.
Por outro lado, o governo petista no poder parece não perceber a importância da conscientização popular para qualquer estratégia de resistência ao projeto elitista de diminuir a importância do voto e da participação popular. O Ministério das Comunicações foi entregue ao centrão de bandeja, dificultando a construção de uma rede alternativa de debate público e informação. Com educação precária – que a reforma do ensino médio só faz agravar – e imprensa venal, a manipulação do público passa a não ter limites.
A esquerda brasileira “se esqueceu” da tradição getulista de disputar as narrativas coletivas dominantes. Parece existir uma espécie de economicismo ingênuo, que imagina que uma política econômica redistributiva seria compreendida de modo imediato enquanto tal pelo público que se beneficia dela. Ledo engano. Na verdade, como o passado recente já mostrou, a assim chamada classe C do Lulismo tendia a interpretar as medidas redistributivas antes como benção divina do que algo construído pela vontade política[1]. Sem uma explicação adequada, que só poderia vir pela construção de uma mídia plural e pela regulação das redes sociais, são as manipulações política e religiosa que assumem o comando da narrativa social dominante.
Em português claro, não adianta o presidente lutar contra os juros altos se toda a imprensa diz que os juros altos são para proteger o cidadão da inflação. A população precisa compreender quem a saqueia e rouba seu futuro. Sem uma política dirigida a este fim, compreendido como o núcleo de qualquer projeto político reformador, o projeto elitista de mitigar e controlar o voto e a soberania popular tende a continuar vitorioso.
[1] Ver Souza, Jessé, Os batalhadores brasileiros, UFMG; 2010.
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