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‘A direita tem que tomar juízo’, diz José Sócrates, ex-primeiro-ministro português

Ele vê com otimismo a política brasileira e diz que extremistas não ganharão eleições
21/03/2024 | 10h05

Por Rodrigo Vianna

José Sócrates foi primeiro-ministro de Portugal de 2005 a 2011 e secretário-geral do Partido Socialista português. No dia seguinte à recente votação em seu país, ele escreveu um artigo publicado no portal ICL Notícias sob o título “O dia em que o Ministério Público ganhou as eleições”. Nessa entrevista ao jornalista Rodrigo Vianna, explica os detalhes da denúncia feita no texto.

Segundo ele, a atuação do MP português contra o ex-primeiro-ministro Antonio Costa criou as condições para o Partido Socialista perder maioria no Parlamento e que o partido de direita avançasse (Luis Montenegro, da Aliança Democrática, foi nomeado hoje como primeiro-ministro), e também a extrema-direita, com a legenda de André Ventura.

Além de detalhar esse quadro, José Sócrates faz uma análise das perspectivas da direita e da extrema-direita tanto em Portugal quanto no Brasil. Quanto à política brasileira, ao contrário de muitos analistas locais, ele se mostra surpreendentemente otimista.

A seguir, a entrevista concedida por José Sócrates, direto de Portugal.

ICL Notícias – O sr. escreveu um artigo publicado aqui no portal com o título “O dia em que o Ministério Público ganhou as eleições”. Parece algo muito parecido com o que aconteceu no Brasil no tempo da Lava Jato.

José Sócrates — o título diz exatamente aquilo que se passou. Há quatro meses, mais propriamente, acho eu no dia 7 de novembro, um grupo de procuradores decidiu fazer umas buscas no gabinete do primeiro-ministro (refere-se a Antonio Costa, que estava no cargo), decidiu abrir um inquérito que, dizem eles, é contra o primeiro-ministro. Dessa forma, levaram à demissão do primeiro-ministro, levaram ao fim da maioria absoluta no Parlamento e levaram à convocação de eleições gerais antecipadas.

Estávamos no meio do mandato, que, como você sabe, é sempre o momento mais difícil para qualquer governo, para qualquer solução governativa. O Partido Socialista foi, portanto, obrigado a ir a eleições no momento em que não previa, em que a Constituição não previa, e que resultaram, essas eleições, não do exercício normal, democrático, da ação de oposição ou de qualquer moção de censura no governo, mas resultaram, isso sim, da ação do Ministério Público.

Ainda hoje estamos para saber o que é que realmente eles têm contra o primeiro-ministro, porque isso está em segredo de Justiça. Só não está em segredo de Justiça aquilo que eles querem que se saiba e que transmitem clandestinamente aos jornalistas, como vem sendo hábito nos últimos anos aqui em Portugal. E como tem sido também um hábito no Brasil, por alturas da Lava Jato. Acho que vocês chamam isso de “vazamentos”. Aqui isso é um crime que se chama violação de segredo de Justiça. Mas tal como aqui, também aí estes crimes são cometidos normalmente pelas próprias autoridades judiciais. Procuradores, juízes, que alimentam a Comunicação Social, no sentido de colocar do seu lado, naquelas que são as suas batalhas absolutamente ilegítimas contra seus adversários políticos. Foi por isso que classifiquei essa situação de modo a se perceber que tudo o que se passou aqui em Portugal foi um exercício de ‘lawfare’ clássico, uma intervenção absolutamente ilegítima do Ministério Público, que levou à demissão do governo, à convocação de eleições e à mudança de governo.

Repare: antes tínhamos uma maioria absoluta de esquerda e agora temos uma maioria no Parlamento que é de partidos de direita, e uma grande expressão da extrema-direita.

André ventura direita portugal

André Ventura, líder do partido Chega, que teve grande avanço nas eleições portuguesas

A gente teve a Lava Jato, o desmonte do governo de Dilma e a entrada do governo de Michel Temer e que depois abre espaço pra extrema-direita. Você acredita que pode acontecer isso em Portugal?

Vocês, brasileiros, olham sempre com uma certa reverência, não sei porque, para a Europa, achando que na Europa não acontecem as “golpadas” judiciais como vocês viveram aí no Brasil. Mas acontecem. Esta foi exatamente aquilo que se pode caracterizar como uma “golpada” judicial. Porque nossa Constituição prevê que as eleições sejam de quatro em quatro anos. Um partido que teve a maioria absoluta dois anos atrás, tem o legítimo direito de esperar disputar eleições só quatro anos depois. Essas eleições foram antecipadas em função da iniciativa do Ministério Público, da iniciativa dos procuradores, que quiseram causar um impacto na política.

O que há de especial nessa “golpada” judicial é que é muito singular e única porque teve de certa forma a cooperação da vítima. A vítima não protestou, a vítima foi para eleições, os socialistas foram alegremente para eleições sem nunca denunciarem a ilegitimidade da forma como estas eleições foram feitas. Houve algumas vozes dentro do Partido Socialista que aqui e ali denunciaram, mas, de certa forma, o Partido Socialista concluiu que, em face do que tinha acontecido, deveriam disputar estas edições.

Eu escrevi artigo cujo título era “A vítima perfeita”. Portanto, os socialistas portaram-se como a vítima perfeita, não só foram vítimas de um abuso judicial, como não denunciaram este abuso judicial em nome talvez de um prestígio das nossas instituições. Como se o prestígio das instituições não se conquistasse com crítica e com a melhoria que a crítica sempre traz, mas que se conquistasse por forma a colocarmos mais debaixo do tapete os malfeitos que as nossas instituições judiciais são capazes de fazer.

Portanto, o que aconteceu aqui em Portugal foi em tudo semelhante com o que aconteceu no Brasil. Enfim, aqui tratou-se apenas de uma demissão e no Brasil tratou-se de um golpe orquestrado entre o Poder Judiciário e o político com a colaboração da imprensa. De certa forma, o que tivemos aqui foi uma atuação de ‘lawfare’ semelhante no que diz respeito à colaboração da imprensa, porque o jornalismo português foi uma parte também da normalização de tudo isto. Você não vê um único jornal, um único jornalista dizendo que o que o Ministério Público fez é completamente ilegítimo.

E veja, lá se vão uns meses e ninguém se lembra de pedir ao Ministério Público: faz favor de apresentar as provas que tinha contra o primeiro-ministro, mostre lá as cartas que tem, ponha em cima da mesa para que todos possamos ver e que todos possamos julgar. O Ministério Público acha-se uma instituição acima das instituições republicanas, e acha que deve ser o árbitro das grandes questões da República, mas não é. Não tem essa figura constitucional, ninguém lhe deu esse poder. Nossa Constituição continua a ser democrática. Todo o poder provém do povo, não de alguns que, por fazerem um concurso público, por terem uma autoridade que lhe vem da lei, a utilizam para efeitos que nada tem a ver com a Justiça, mas com a política.

Luis Montenegro, da Aliança Democrática, nomeado primeiro-ministro de Portugal

Que tipo de governo vai se formar a partir desse cenário, em que o governo Partido Socialista sai e entra um partido da direita tradicional? E o papel da extrema-direita, que é o que nos preocupa mais.

Eu gostaria de lembrar do seguinte: é muito raro você ver uma ação ilegítima da Justiça que resulte na substituição da direita pela esquerda. Mas é muito frequente você ver uma ação judicial que resulta da substituição da esquerda pela direita. Isto é, a cara da “golpada” judicial é sempre a extrema-direita. O que aconteceu de mais relevante nestas eleições foi realmente a subida da extrema-direita, o grande vencedor, a grade vencedora da noite eleitoral é, sem dúvida, a extrema-direita. O Partido Socialista perde muitos deputados, perde muitos votos, fica nos 28 e qualquer coisa por cento,. O partido de centro-direita que rivalizou com o Partido Socialista, ou que rivalizou ao longo dos últimos 50 anos da nossa democracia na alternância do governo, teve pouco mais de 29%, ficou com mais de 50 mil votos que o Partido Socialista.

A chave do que vai acontecer para o futuro é sem dúvida a formação política de extrema-direita, que passa de uma votação abaixo dos 10% para os 18%. No fundo o que nós estamos a assistir é uma disputa entre as duas partes da direita sobre o que vai acontecer. A extrema-direita quer participar do governo, quer fazer um acordo e a direita democrática está muito pressionada por isso.

Enfim, mas é preciso também que vocês saibam que o líder da direita diz que não faria acordo com o Chega. Vamos ver se faz ou se não faz. A situação do Parlamento vai falar mais forte no fim do dia. Mas, enfim, estamos para ver. Não posso fazer esta antecipação, porque talvez até fosse injusto.

Agora, olhando para a experiência brasileira, o que é que diferencia a experiência portuguesa da experiência brasileira? Verdadeiramente, olhando para o Brasil a característica mais deprimente da situação brasileira é que não existe direita democrática. Existiam partidos da direita democrática mas não existia uma direita democrática. Toda a direita, como nós temos visto, está na extrema-direita. Esteve assim em 2018, quando ganhou Bolsonaro, mas esteve assim em 2022. Porque dois anos depois de terem partido as eleições militantemente, fervorosamente, a apoiar Bolsonaro. Eu não vejo nenhuma alteração e isso é o que é mais deprimente. Aqui ainda estamos num momento em que a direita classifica, a direita democrática, ainda tem a coragem de dizer “não faremos nenhum acordo com o Chega”.

Qual o sr. imagina que seja espaço para avanço do partido extremista Chega, de André Ventura?

Você está a fazer uma pergunta que eu não sei responder. Repare, se me tivesse perguntado há uns anos, eu nunca lhe teria dito que a extrema-direita em Portugal chegaria aos 18%. Eu sempre achei que a direita salazarista, a direita do antigo regime, a direita nostálgica do império e do Portugal projetado no mundo com as colônias, que faz apologia no colonialismo, existia, mas tinha uma expressão política residual, de 6%, 7%. Bom, tem 18%.

O que vai acontecer no futuro? Não sei, mas há uma disputa em marcha. Há uma batalha que está a se desenrolar neste momento que é uma batalha cujo desenvolvimento vai ditar muito daquilo que vai ser a democracia portuguesa nos próximos tempos. Porque o desaparecimento da direita democrática é uma desgraça para todos. Mesmo para a esquerda. A esquerda só existe em função da direita. É fácil de entender, só existe direita se houver esquerda e só existe esquerda se houver direita.

É uma desgraça para toda a democracia o desaparecimento da direita que a esquerda possa respeitar. Quando digo que possa respeitar, quer dizer o seguinte: a direita tem que se conformar com as regras do jogo democrático. E as regras do jogo democrático são, em primeiro lugar, aquilo que é expressão livre da vontade popular, as eleições. O respeito pela vontade popular. Coisa que esteve em jogo aí no Brasil. Como se viu na vossa eleição brasileira, antes e depois das eleições, o vosso presidente achava que primeiro que o sistema não era fiável e depois uma série de cidadãos brasileiros decidiram invadir as instituições brasileiras protestando contra a vitória do seu opositor, como aconteceu nos Estados Unidos.

Isso cria um problema, mas para além disso é preciso recordar que a democracia não apenas o respeito pela participação democrática, pela decisão das urnas. A democracia também é a proteção das minorias, inclui no seu âmago a proteção daqueles que são mais fracos, daqueles que perdem. A democracia é feito de maioria e de minorias. A Constituição democrática protege as minorias, para garantir para que um dia possam vir a ser maiorias. E até protege a menor das minorias, que é o indivíduo. O indivíduo tem que ter as suas liberdades seguradas, tem que ter a sua autonomia, onde não entram as considerações morais de ninguém, nem do Estado.

No fundo, o problema da extrema-direita tem a ver com duas coisas. Primeiro, a ausência de respeito por aqueles que são os seus adversários. Para eles, não são adversários, são inimigos. No fundo é a ideia populista que há um povo originário, que no Brasil a extrema-direita costumava designar por pessoas de bem, um povo que é um resultado de uma longa caminhada de tradição brasileira. Depois havia um não-povo, os outros, os esquerdistas, os homossexuais, os imigrantes, todos aqueles que tenham qualquer problema que é não pensarem exatamente como eles.

Isso cria um problema muito sério para a democracia. Dos dois lados passa a haver uma desconfiança fundamental, que a desconfiança de que o outro lado pode ocorrer à violência para se perpetuar no poder.

Presidente Lula

Como vê a situação do governo brasileiro? Tivemos pesquisas recentes que mostraram uma queda de popularidade. Acha que Lula consegue se recuperar e se manter como uma liderança importante nesse campo democrático?

Você sabe que todos os políticos são otimistas. Houve quem dissesse que o político é o profissional do otimismo. Eu tenho um grande otimismo. No dia em que Bolsonaro ganhou as eleições, todos os meus amigos brasileiros estavam muito premidos e eu disse-lhes: eu olho para o resultado das eleições com grande otimismo, porque para o PT ganhar 47 milhões de votos, para terem tantos deputados, eles ganharam nesta noite o direito de disputar as eleições daqui a quatro anos. As eleições de 2022 começaram a ser vencidas em 2018, pela resistência do PT a tudo aquilo que foi um ataque à sua identidade e um apelo ao banimento do Partido dos Trabalhadores. Essa foi uma luta épica.

Vejo a situação do Brasil com muito otimismo. O país tem uma nova posição no mundo, não há mais nenhuma nação amiga a queixar-se do Brasil. A posição do país hoje é correspondente ao que representa, aos 210 milhões de habitantes que tem, à potência econômica enquanto país líder na América Latina. Você não tem notícias de grosserias políticas, de ataques a jornalistas ou de desconsiderações feitas a adversários por razões fúteis. É um exercício de governação. Perguntar-me-á: mas nem todos estão satisfeitos. Mas com certeza haverá sempre pessoas que não estão satisfeitas.

Aquilo que me parece ser o aspecto mais importante da análise da situação política do Brasil é o seguinte: a direita precisa tomar juízo. A direita nunca ganhará eleições só pela extrema-direita. Como se viu nas últimas. Haverá sempre uma pequena parcela do eleitorado moderado que não dará seu voto a soluções violentas e radicais. É por isso que a direita tem neste momento um drama, que é eleger a sua liderança.

A direita está num grande tumulto, agita-se, vai para a rua, mas verdadeiramente não resolve o seu problema, que é esse: onde está e essa liderança? Essa liderança, de que tipo será? Uma liderança que apela ao extremo, que tem uma linguagem violenta com os seus adversários, que defende o radicalismo? Ou será o da direita que finalmente competirá com a com a esquerda naquilo que essencial é essencial numa competição política: eu governarei melhor do que tu para resolver os problemas do nosso país e do nosso povo.

Então, se me pergunta como é que eu vejo a situação no Brasil, vejo-a muito bem. No fundo, o governo Lula trouxe uma certa racionalidade de novo para a política. Deixamos de discutir as doideiras que costumavam ser discutidas. A política externa brasileira voltou a ter racionalidade, a ser previsível.

Quanto à direita, o que eu tenho para dizer é aquilo que digo há muito tempo: enquanto a direita não perceber que tem um problema com seu próprio extremismo, que tem que eleger um líder que seja moderado, que faça apelo ao centro político, que compita com a esquerda para liderar um bloco social para lhe dar alguma possibilidade de vitória, a direita vai sempre ter aquele resultado que teve, a estar perto. Mas não ganham.

A decisão de Alckmin e de outras figuras da direita de romper com o Bolsonaro foi uma decisão corajosa. Naquela altura não havia outra alternativa a não ser: Lula é o único candidato que derrotará o atual presidente. Mas agora a luta daqueles que levam os valores da direita democrática é escolher uma nova liderança que dê de novo condições de competitividade eleitoral à direita brasileira. Eu não vejo. Podem ser muitos na rua, mas nunca aqueles que são muitos na rua ganham eleições. Ficam perto. Mas não ganham eleições. E por quê? Porque haverá sempre aqueles 5% de pessoas que não gostam da violência, que sabem que o radicalismo não é solução para nenhum problema do seu país.

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