Em tese, ninguém pode dizer que não sabia que um crime era crime para, depois de cometê-lo, escapar da punição. Digo em teoria porque está lá, no artigo terceiro da Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro: “Ninguém pode alegar desconhecimento da lei”. Ninguém pode, mas todo mundo desconhece e alguns pagam caro não por não saber, mas por se recusar a acessar o conhecimento mínimo do que implica ser uma pessoa adulta, com todos os direitos e deveres que advém disso.
A cabeleireira Débora, o símbolo de mãe afastada dos filhos por estar presa como parte da trama golpista do 8 de janeiro de 2023, é um exemplo clássico. Não é difícil ouvir e ver a sua atuação pré-tentativa de golpe. Ela não é diferente de muitos e muitas, que não se preocuparam minimamente com a lei porque se achavam acima da própria. Mesmo ela sendo mulher, mesmo sendo pobre (rico foi quem a incitou a fazer o que fez para depois tirar o corpo fora), mesmo tendo filhos para criar e uma vida para viver.
Voluntariamente, Débora largou as escovas, secadores, shampoos e os filhinhos para mergulhar de cabeça em todas as tramas, marchar em frente aos quartéis, clamar por um golpe de estado. Lei? Que lei? Se o desconhecimento com a história recente do próprio país é tão profundo a ponto de não saber o que significa de FATO uma ditadura militar, quanto mais…
Ela teve seu momento de glória ao sacar um batom e provocar como fazem crianças de 5ª série, usando a frase do “cara que ela não gosta”, supostamente contra ele. Não foi tão simples tirar as marcas da obra de arte, assim como não foi simples o que ela fez. Ela e outras 400 pessoas se viram em um filme de ação, em um momento glamuroso e histórico, menos como coadjuvantes em algo inconstitucional e criminoso.
Não lhes passou pela cabeça nenhuma consequência mais grave porque desconheciam a lei e pelo longo histórico de impunidades com atos semelhantes, como alguém exaltar um torturador famoso por sua crueldade em pleno Congresso Nacional e sair de lá não para uma punição, mas para ser empossado pouco tempo depois como presidente da República.
Débora não sabia da lei por conta do nosso déficit educacional, a forma rasa como se abordam questões de Estado e pela lavagem cerebral das bolhas mentirosas de redes sociais que cavalgam sem nenhum freio a internet, com a condescendência de quem se aproveita da falta de escrúpulos com que tudo isso é usado.
Débora responde por cinco crimes: abolição violenta do Estado Democrático de Direito, tentativa de golpe de Estado, dano qualificado com violência, associação criminosa armada e deterioração de patrimônio tombado, mas não são apenas pessoas que comungam do campo ideológico defendido por ela que estão doídas com o destino de Débora. Subitamente, ela virou alvo da compaixão de gente de todo o espectro político.
No final do ano passado estive em um presídio feminino, para visitar um programa de incentivo à leitura. Encarceradas ali estavam muitas mães, várias cabeleireiras, algumas com delitos infinitamente menores dos que o de Débora, que caso a ditadura tão desejada por ela fosse instaurada, estaria tranquila vendo pela televisão as prisões e o silenciamento de opositores. Como disseram a ministra Carmem Lúcia e o ministro Flávio Dino, ditadura mata. Se não é imediatamente, é daqui a pouco.
Naquele presídio, muitas também desconhecem a lei porque nenhuma oportunidade de conhecimento jamais as alcançou, mas ninguém ali é alvo da compaixão, empatia, lembrança e das resenhas de jornais e jornalistas pedindo para abrandarem suas penas. Ao que tudo indica, o problema delas foi não ter um batom e uma estátua cara para pichar.
Por elas, em sua maioria mulheres negras, não há nenhum coração batendo embaixo das togas.
Com toda essa propaganda, quando Débora dos Santos sair da prisão (e isso pode ocorrer muito mais rápido do que se pensa), corremos o risco de vê-la eleita e com um ótimo slogan: “Perdeu, Mané”.
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