*Débora Magagna e André Campedelli
Michael Kalecki é um dos economistas heterodoxos mais importantes da história da economia. Uma das bases de sua teoria macroeconômica é pautada no que ele chama de distribuição funcional da renda. Nessa teoria, ele afirma que existe uma disputa de classes no excedente de renda formado entre capitalistas e trabalhadores. Em outras palavras, o valor adicionado da produção é alvo de disputa entre aqueles que produziram as mercadorias e a classe empresarial. Essa teoria serve para explicar uma série de coisas na economia, desde a distribuição da renda, o ritmo econômico e a inflação.
Segundo o autor, em uma economia oligopolizada, ou seja, com poucas empresas realizando a produção da maioria dos produtos, não existe como uma empresa reduzir ou aumentar o preço dos bens sem que ocorra uma reação contrária das outras empresas concorrentes. Por isso, há certa estabilidade de preços. Existe somente uma maneira de ocorrer variação no nível de preços, quando os custos para todos os concorrentes variam na mesma intensidade de forma uniforme. Isso ocorre em caso de choques de custo, como o aumento do preço de insumos (o petróleo por exemplo), ou com o aumento do custo do trabalho, no caso de reajuste para cima do salário mínimo.
A empresa, nessa teoria, quando possui uma redução de custos, não transfere isso para os preços. Na realidade, ela utiliza tal situação para aumentar sua margem de lucro. Como os custos se reduzem uniformemente entre todos, esse movimento acaba se tornando generalizado entre os capitalistas. Há, portanto, uma situação que torna difícil a vida do trabalhador, pois, caso ele busque melhoria nos salários, isso também poderá gerar aumento do preço dos bens que ele vai consumir. Se houver elevação de um bem qualquer, ele também vai sofrer com o aumento do preço dos bens produzidos a partir de tal insumo. Mas, nesse momento, sem nem mesmo ter algum ganho salarial como consequência disso.
Porém, existe uma maneira, nessa teoria, de amenizar tal situação, deixando-a um pouco melhor para a classe trabalhadora. Esse mecanismo é a organização trabalhista, por meio principalmente de sindicatos. Nesse caso, funcionários organizados conseguem fazer com que o salário aumente e, consequentemente, obtêm uma parcela maior do valor agregado gerado na economia. Isso dá maior poder de compra ao trabalhador, que aumenta o consumo econômico, melhorando a dinâmica do capitalismo e aumentando em volume a receita total dos capitalistas. Além disso, essa engrenagem ameniza a tentativa de repassar os aumentos de salário para o preço final, pois o capitalista, mesmo que temporariamente, estaria disposto a trocar uma redução da margem de lucro por um volume maior de lucro que pode obter.
Então, a organização trabalhista, nessa teoria, possui um caráter especial sobre a dinâmica capitalista. Ela ajuda a melhorar a distribuição de renda, a dinamizar a economia, a aumentar o crescimento econômico e inibe a tentação do capitalista de aumentar seus preços devido ao aumento dos custos, além de gerar certa distribuição de renda. E tudo isso parece ser um jogo de ganha-ganha, pois os trabalhadores ganham com maior renda e maior consumo, e os capitalistas ganham com maior volume de vendas e maior valor de lucro, mesmo que com uma margem menor em porcentagem.
Mas, importante lembrar, a disputa entre classes está no coração dessa teoria, e chega uma hora em que o capitalista não quer mais essa situação. A explicação desse fenômeno está em seu texto clássico, chamado “Aspectos Políticos do Pleno Emprego”. Neste texto, ele explica que, em certo momento, o capitalista se incomoda de ver a classe trabalhadora tendo benefícios que somente ele possuía, e começa a atuar contra a situação econômica, que lhe é favorável, para disciplinar a classe trabalhadora.
O desemprego é desejável, pois disciplina o trabalhador e ensina seu lugar no mundo. Os bens que eles tinham acesso agora voltam a ser de direito de somente uma elite abastada. Isso pode ter significado uma perda para o capitalista, que vê suas vendas caírem, seu lucro se reduzir, mas ele está preparado para essa situação. O capitalista topa temporariamente ter esse prejuízo se isso significar colocar a classe trabalhadora no seu devido lugar, que é o de mão de obra barata e exército de reserva de trabalho capitalista.
Agora, imagine se fosse possível tentar reduzir o poder de barganha dos trabalhadores, o que impediria essa situação incômoda de ter que abrir mão de maior lucratividade temporariamente só para disciplinar os trabalhadores. Imagine se isso fosse feito de forma a tornar institucional a individualização do trabalhador, dificultando ao máximo sua organização para lutar por melhores salários e condições de vida, garantindo que não vai ocorrer grandes aumentos de custos com salários nem pressão para reduzir sua margem de lucro.
Esse foi o papel da reforma trabalhista no país. Ela institucionalizou a desorganização do trabalho no Brasil, impedindo que essa situação incômoda para o empresário ocorresse. Antes da reforma trabalhista, quando existia um bom nível de organização sindical, o reajuste dos salários era quase sempre acima da inflação, gerando ganhos reais de salário e, consequentemente, aumentando a renda do trabalhador. Esse mecanismo estimula o consumo e gera situações de grande aquecimento econômico, que foi basicamente o que ocorreu nos anos 2000. Mesmo no começo dos anos 2010, quando o crescimento foi mais errático, o trabalhador não era tão penalizado, pois seus reajustes eram quase que na totalidade acima da inflação, pelo menos até 2014.
O fato é que, com a reforma trabalhista, nunca mais se viu uma situação com reajustes salariais acima da inflação de forma consistente, nem mesmo um crescimento econômico que se possa dizer considerável. O desemprego continua elevado, da maneira que o capital gosta, com um grande exército de reserva que garante uma troca fácil de mão de obra. Além disso, a margem de lucro, que foi perdida nos anos de maior organização da classe trabalhadora, agora passou a ser constantemente reposta, com uma alta de diversos alimentos nos primeiros sinais de crise em 2015.
Muito se engana quem acha que a reforma trabalhista fracassou por ter gerado uma quantidade menor de empregos que a estipulada. Na verdade, essa é uma das reformas de maior sucesso do governo de Michel Temer, e Bolsonaro também consegue colher seus frutos. Ela garantiu ao capitalista uma situação confortável, com alto desemprego garantindo mão de obra barata, um trabalhador sem capacidade de exigir aumentos de salário e uma economia que garanta a ele repassar qualquer choque de custos para os preços, além de um privilégio social que ele havia perdido parcialmente nos últimos anos. Agora, os aeroportos voltam a ficar exclusivos para essa casta, os serviços domésticos estão cada vez mais baratos e a contratação de um funcionário sem direitos trabalhistas nunca foi tão fácil.
Temos visto a quantidade de trabalhadores que não conseguem nem ao menos manter seu poder de compra na hora de negociar o reajuste do seu salário. Isso mostra que cada vez mais a classe trabalhadora se encontra enfraquecida com a desorganização sindical ocorrida. Isso tudo é projeto. A reforma trabalhista é a grande responsável por tudo isso que o trabalhador brasileiro vive no momento, garantindo o paraíso para os empresários e o purgatório aos trabalhadores, e deve ser uma das primeiras propostas a serem revistas num eventual futuro governo progressista, o qual, se tudo der certo, será aquele que vai substituir o atual e péssimo governo Bolsonaro.
*Deborah Magagna é economista do ICL, graduada pela PUC-SP com pós-graduação em Finanças Avançadas pelo Insper. É especialista em investimentos e mercados de capitais
*André Campedelli é economista do ICL e professor de Economia graduado pela PUC-SP. É doutorando pela Unicamp, com trabalhos focados em conjuntura macroeconômica brasileira
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