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Economia

Para diretora da Oxfam, desigualdade é o maior problema do planeta

Para a socióloga Kátia Maia, a pressão da sociedade sobre o Estado é absolutamente necessária
15/01/2024 | 11h35

Por Chico Alves

A absurda concentração de renda e poder nas mãos dos super-ricos, em contraste com as condições cada vez mais precárias dos trabalhadores em todo mundo, não é somente mais uma questão importante a ser resolvida. Para a socióloga Katia Maia, a diretora-executiva da Oxfam no Brasil, esse é o principal problema do planeta.

A Oxfam Internacional é uma confederação de 19 organizações e mais de 3.000 parceiros, que atua em mais de 90 países na busca de soluções para o problema da pobreza e desigualdade.

O relatório elaborado pela entidade, para ser apresentado em Davos, na reunião dos países mais poderosos do mundo, detectou que a desigualdade entre países de Norte e Sul aumentou pela primeira vez em 25 anos. Os monopólios estão cada vez mais concentrados.

As consequências políticas, sociais e ambientais desse desequilíbrio são detalhadas por Katia Maia na entrevista a seguir:

Katia Maia, diretora-executiva da Oxfam.

ICL Notícias — Qual é o grande destaque do relatório?

Katia Maia — Eu diria que é dar visibilidade a essa relação entre o aumento das desigualdades e o poder corporativo global. O poder das grandes empresas e especialmente o monopólio é uma máquina de gerar desigualdades. E isso se conecta quando você constata que em 7 das 10 maiores empresas do mundo tem 1 bilionário no poder. São empresas que realmente permitem a concentração de riqueza. Quando você pensa em colocar juntos os super-ricos, enxergamos que as grandes corporações têm o controle da economia. Com isso, elas têm também um controle sobre a política.

Mostramos essa relação em dados, dirigidos a Davos, onde estão os grandes representantes dessas corporações. É importante para a gente trazer um outro tipo de debate.

Algum dado em especial surpreendeu?

Eu destacaria primeiro a velocidade da ampliação desse poder monopolista. Você vê como está reduzindo o número de grandes corporações no setor das farmacêuticas, as “big farma”; o setor de sementes, em que há 25 anos tínhamos dez empresas dominando 40% do mercado no mundo e hoje temos somente duas. Há uma aceleração grande da concentração tanto do monopólio quanto desse aumento da riqueza.

Quando você vai olhar essas grandes corporações, a distribuição de lucros e dividendos para acionistas é um negócio impressionante, fora de proporção. Você pega o caso da Americanas, que não está no relatório. A Americanas teve um rombo de R$ 20 bilhões e os caras que são os principais acionistas tiveram aumento de riqueza ainda.

No relatório, a gente está chamando de década da divisão: é a primeira vez em 25 anos que a desigualdade global cresce. Cresce entre Norte e Sul e cresce dentro dos próprios países. Então, estamos muito preocupados, porque se você pensa que em 2020 nós tivemos pandemia, e depois veio crise de preço de alimentos, colapso climático, guerras… e isso não afeta essas grandes corporações, esses super-ricos. Então, isso está se normalizando. Essa é a preocupação. Como é que a sociedade vai permitindo a normalização de algo tão inaceitável? Que causa tanta indignação, como essa concentração de riqueza?

Você acha que a desigualdade é o nosso principal problema?

Eu acho, sim, que a desigualdade é o principal problema do planeta, porque ela tem uma questão profunda que é essa separação da humanidade em cidadãs e cidadãos de primeira e de segunda categoria. A humanidade deveria ter como princípio que somos todos seres humanos, todos e todas, e que, portanto, temos todos e todas os mesmos direitos. Mas não é isso que acontece e cada vez mais a desumanidade, a falta de solidariedade, a normalização da violência, a normalização da exclusão social estão fazendo com que a gente tenha milhões de pessoas como segunda categoria.

E mesmo quando a gente pensa temas como a própria questão climática, os maiores responsáveis pela situação do colapso climático que a gente vive hoje são aqueles que mais têm e os mais impactados são os que menos têm. Então, eu diria que à medida que esse abismo vai aumentando entre países, isso vai realmente gerando um descolamento de uma maioria da população. E, por isso, eu diria que esse é o principal problema do planeta.

O que fazer diante dessa escalada da desigualdade?

Para nós, o estado tem que voltar a cumprir seu papel. Eu acho tão engraçado porque os críticos do estado sempre dizem que tem que deixar o mercado livre, mas está aí esse monopólio que não tem nada a ver com o mercado livre. Não existe livre concorrência quando você tem esses setores poderosos, que quando entram em crise o estado entra para colocar dinheiro, o estado entra para apoiar com isenção fiscal.

Agora, na hora que é para o estado entrar pra organizar isso, para dizer “calma, aqui está passando dos limites”, aí isso não pode.

Qual é a consequência dessa concentração crescente de dinheiro?

O primeiro ponto é a questão do trabalho. Porque essa concentração, essa possibilidade de gerar cada vez mais riqueza para acionista, é feita às custas dos trabalhadores. No último ano, temos 800 milhões de trabalhadores no mundo cujos salários ficaram abaixo da inflação. E você tem os CEOs, os acionistas, todo mundo ganhando montanhas de dinheiro, mas você tem 800 milhões de trabalhadores que nem conseguiram cobrir a inflação.

Então você tem a falta de trabalho digno, o declínio histórico mesmo dos salários e das condições de trabalho. A Amazon, por exemplo, faz tudo pra bloquear a organização sindical dos trabalhadores. Nessas grandes corporações, as condições de trabalho pelo mundo, a forma como eles operam, é terrível.

Além disso, elas têm um planejamento tributário agressivo, procuram brechas para não pagar imposto. E ainda pressionam os governos para ter os incentivos fiscais. Com alíquotas muito baixas. Então, quando o governo deixa de arrecadar, deixa de ter recurso para as políticas públicas, é a discussão que a gente está tendo no Brasil. É claro que você tem momentos em que o incentivo fiscal é necessário, mas o Brasil precisa fazer uma auditoria dos incentivos fiscais. Vamos olhar todos os incentivos fiscais que existem nesse país, quais são aqueles que efetivamente contribuem para combater a desigualdade e não que ficam alimentando essa concentração de monopólio.

Temos um outro ponto que também é importante: o poder dessas grandes empresas na sua pressão sobre o setor público, quanto ao acesso a serviços públicos, essa pressão pela mercantilização e segregação do acesso a serviços vitais, como Educação, Água, Saúde… Esses setores movimentam trilhões de dólares. Essa pressão vem de todos os lados, entra na mídia, que tem uma narrativa de que tudo privado é melhor. Às vezes, sim, às vezes não. O interesse final do privado é a distribuição de lucros e dividendos e não o bem-estar da população. Isso é uma diferença significativa.

O outro elemento também de impacto é a questão climática. Quando você vai olhar os investimentos de muitos desses bilionários das grandes corporações, os super-ricos investem muito em processos que não têm nada a ver com redução das mudanças climáticas. Ao contrário. A questão energética é um exemplo disso, a questão do petróleo e vários outros caminhos de investimento têm essa mesma lógica, que é o retorno no curto prazo.

Quais os caminhos a seguir para reverter esse quadro?

A pressão da sociedade sobre o Estado é absolutamente necessária. Sobre o Congresso, sobre o governo. A gente coloca como importante ter uma qualidade de dados e método de medição de desigualdade que sejam a base para um tipo de prestação de contas a partir de metas estabelecidas pelos governos para redução das desigualdades. O governo tem que ter meta explícita. A gente está recuperando essa capacidade, com o IBGE, uma instituição respeitada no mundo.

Tem essa questão de revitalizar o Estado. A sociedade, as organizações, os movimentos, cidadãs, cidadãos precisam entender que o Estado tem um papel importante. E é interessante porque tem sempre essa conversa de que a população quer menos Estado porque o Estado é corrupto. No final de 2022, fizemos uma pesquisa com o Datafolha e a gente tinha a seguinte percepção: mais de 80% da população acha que é importante ter universidade pública, serviço médico universal. Ou seja, todas essas conquistas que nós temos no Brasil a população reconhece e acha importante que seja responsabilidade do Estado.

Fizemos também a seguinte pergunta: “Você acha que o governo deveria cobrar mais impostos dos muito ricos para investir em políticas públicas?” 85% diz que sim. Eu não acredito que nesses 2 anos isso tenha mudado muito. Você tem uma consolidação dessa ideia na sociedade, apesar de a narrativa midiática ser de depreciação do Estado. Então, eu acho que é entender que o Estado é que tem que garantir os serviços públicos que podem reduzir desigualdade e fazer essa regulação dessas grandes corporações.

Existem ações judiciais tanto na União Europeia como nos Estados Unidos para romper monopólios privados, uma movimentação de Estados para combater esses monopólios.

A outra questão é o empoderamento, a força, a importância de trabalhadores, para pressionar mesmo. Os protestos vieram pra ficar, não vão desaparecer. E os protestos estão cada vez mais próximos da situação econômica das pessoas.

Além disso, a elevação de impostos para essas grandes empresas e para os super-ricos. Veja o poder dessas pessoas, dessas grandes empresas, a discussão da reforma tributária no Brasil. Olha bem: 30 anos pra se fazer aquela coisa da simplificação que não resolve o problema.

 

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