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MPF detalha ações e omissões do governo Bolsonaro na crise humanitária da TI Yanomami

Omissão foi generalizada e se espalhou por Funai, Ibama, Exército e Secretaria Especial de Saúde Indígena, diz MPF
27/01/2023 | 17h00

O governo de Jair Bolsonaro (PL) ignorou de maneira proposital e sistemática a crise humanitária provocada pelo garimpo ilegal na Terra Indígena (TI) Yanomami. A inação persistiu mesmo após reiteradas decisões judiciais que obrigavam o poder público a agir.

Conforme os indicadores de saúde dos Yanomami se deterioravam, o comportamento negligente se espalhava por todas as instâncias do Executivo federal que deveriam ter protegido os indígenas da invasão garimpeira: Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), Funai, Ibama e Exército/Ministério da Defesa.

As condutas vão desde leniência com um esquema de corrupção que desviou medicamentos destinados aos indígenas, até operações de combate ao garimpo propositalmente ineficazes, passando pelo corte da alimentação em unidades de saúde e a tentativa de reverter os minérios apreendidos para o orçamento da União.

Com as palavras “horror”, “excrescência” e “absurdo”, o cenário foi descrito em detalhes durante entrevista coletiva concedida por procuradores do Ministério Público Federal (MPF) de Roraima na terça-feira (25). As informações constam de documentos de ações judiciais aos quais o Brasil de Fato teve acesso.

Entenda a seguir como, segundo o MPF, o governo Bolsonaro provocou a crise humanitária na TI Yanomami.

Governo Bolsonaro: Funai preferiu pagar multa diária à construir base de proteção

Segundo os promotores, a primeira ação judicial protocolada pelo MPF alertando para o problema é de 2017, ainda no govenro de Michel Temer (MDB). Bolsonaro assume em 2019 e a Funai, sob a presidência de Marcelo Xavier, e só começou a instalar bases de proteção nos pontos mais críticos de garimpo depois de uma decisão da Justiça Federal.

Mesmo assim, a base do rio Uraricoera, um dos epicentros de garimpo, ficou de fora. Passados mais de cinco anos desde a ordem judicial, o local segue sem proteção.

“É no rio Uraricoera onde fica o garimpo mais violento, com presença de membros de facções criminosas. A falta da presença do Estado naquele local faz com que o garimpo tenha livre acesso ao território”, afirmou o procurador Alisson Marugal, do MPF de Roraima.

Diante da resistência da Funai em implementar a base no Uraricoera, a Justiça determinou em 2021 uma multa diária contra a fundação para estimular a construção da base de proteção. Nem assim a decisão foi cumprida.

“Hoje a Funai paga 10 mil reais por dia por não ter implementado a base de proteção, o que é bastante grave”, disse Marugal.

Operações conjuntas propositalmente ineficazes

Em julho de 2020, o governo federal foi alvo de uma decisão judicial que determinava a retirada do garimpo ilegal do território Yanomami. Conforme Marugal, a gestão Bolsonaro apresentou uma “resistência muito grande” para cumprir a medida.

Demorou um ano para que fosse formulado um plano operacional de atuação integrada, que previa atuação de diversos órgãos federais.

A contragosto, o governo federal mobilizou Ibama, ICMBio e Funai para expulsar garimpeiros a partir do segundo semestre de 2021. Mas o modelo das operações logo se mostrou ineficaz. Após a incursão das forças federais nos territórios, os garimpeiros logo se reorganizavam.

“Todos sabiam que o modelo de operações proposto pelo Ministério da Justiça com base em ciclos operacionais seria inefetivo por diversas razões”, disse o procurador.

“Eram operações muito rápidas, de cinco a 10 dias, com pouco efetivo, pouca logística, atuando apenas em alguns pontos do território, não de maneira global”, explicou Marugal.

Àquela altura, o MPF estimava 421 pontos de mineração ilegal. As operações atuaram apenas em nove deles. “Elas cessaram com resultado pontual exitoso, mas a longo prazo não observamos nenhum impacto”, completou Marugal.

“No final de 2021, o governo federal se dá por satisfeito, alegando que cumpriu o plano operacional. Nas audiências [judiciais], o governo alegou que o garimpo é algo que seria dificilmente solucionado”, lembrou o integrante do MPF.

Exército ignorou ponto de garimpo a poucos quilômetros de distância

Ainda em novembro de 2021, o então vice-presidente de Bolsonaro, Hamilton Mourão, afirmou a jornalistas que a solução para o problema se daria apenas com a regularização do garimpo em terras indígenas. Ele considerou “inflada” a estimativa da quantidade de garimpeiros no território.

Mourão, que presidia o Conselho da Amazônia Legal, disse que o número girava em torno de 3 a 3,5 mil mineradores clandestinos. Já para o MPF, o número “mais razoável” é de 20 mil.

“Em 2022 tivemos o momento de mais tensão, de um horror completo do MPF de observar aquela imensa invasão garimpeira, muitas vezes do lado de pelotão de fronteira do Exército em Surucucu, a poucos quilômetros de um garimpo ilegal”, descreveu o procurador do MPF.

Marugal acrescentou que os Yanomami nunca foram favorecidos pelo Exército. “Quando tivemos notícia de conflito com garimpeiros, chamei uma reunião no Exército. A orientação é que eles não fariam nada sem a determinação do Ministério da Defesa”, relatou.

Ibama vetou operações que poderiam ter colocado fim ao garimpo

A persistência do cenário de calamidade levou a Justiça a ordenar que as operações fossem retomadas. Mas elas foram executadas no mesmo modelo anterior, cuja ineficácia já havia sido comprovada.

Marugal relatou que o analista ambiental do Ibama Hugo Loss, especialista em operações na Amazônia, havia formulado um plano de operações que sanava os problemas do anterior. Contaria com mais efetivo e com a presença mais duradoura das agências federais no território.

“O Ibama impediu que houvesse operações adequadas. O plano foi formulado pelo Hugo Loss, mas jamais aplicado pelo Ibama em Brasília”, lamentou o procurador. O Ibama era presidido por Eduardo Bim.

Loss se manifestou pelo Twitter no último domingo (22). “Várias alternativas foram colocadas e muita luta foi feita para conseguir, no final, apenas ações mínimas no território. Não foi por omissão, não foi por negligência, não foi por falta de conhecimento: foi um projeto”, publicou.

Corte da alimentação e desrespeito às tradições Yanomami

Os procuradores contam que o Ministério da Saúde decidiu, em 2020, “de maneira incompreensível”, cessar o fornecimento de alimentação dos indígenas nos postos de saúde do interior da TI Yanomami.

“Isso fez com que muitos indígenas deixassem de procurar o posto de saúde ou desistissem do tratamento e gerou grande reclamação dos indígenas”, disse Marugal. O MPF recomendou que a decisão fosse revertida, com destinação prioritária de comida para para crianças e idosos desnutridos.

As mortes aumentaram, e muitos corpos foram levados para serem enterrados em Boa Vista (RR), desrespeitando a tradição cultural Yanomami. “Uma falta de compreensão e de sensibilidade com os Yanomami por parte da Sesai. Essa foi outra ação que ajuizamos, e estamos na expectativa que esses corpos sejam devolvidos”, afirmou o procurador.

A desassistência na área da saúde incluía ainda falta de médicos, medicamentos, enfermeiros, biólogos e nutricionistas. “Não havia contrato de transporte aéreo naquela época que desse conta do enorme desafio logístico de atender o território yanomami”, pontuou o membro do MPF.

Sesai ignorou esquema de desvio de medicamentos

Em uma vistoria pelas unidades de saúde no ano passado, Marugal disse que se surpreendeu com a falta generalizada de medicamentos básicos e baratos, como o albendazol, usado para parasitas ou vermes no sistema digestivo de adultos e crianças.

Uma investigação foi aberta, e o MPF descobriu um esquema de desvio de recursos públicos pela empresa Balme, que tinha um contrato de fornecimento com o Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI), a unidade gestora descentralizada ligada à Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai).

A empresa recebia os valores, mas não repassava os medicamentos. Das 13 mil crianças no público alvo para o tratamento de verminoses, apenas 3 mil foram medicadas. A Sesai, segundo o MPF, não agiu para recompor os estoques de medicamento, nem tomou qualquer providência para punir a empresa.

“Embora tivesse discurso anticorrupção, o governo deixou que o esquema se implantasse. Gestores do DSEI Yanomami não tinham experiência em saúde, nem no indigenismo. A Sesai tinha conhecimento da falta de estoques de medicamentos e pouco fez para solucionar isso”, relata Marugal.

O MPF vê indícios de crime na conduta da Sesai, que durante o governo Bolsonaro foi chefiada por dois coronéis do Exército, Robson Santos da Silva e Reginaldo Ramos Machado, ambos sem experiência prévia com povos originários.

“Encontramos muita resistência na Sesai para tomar medidas que pudessem dar visibilidade à gravidade do que aconteceu com os yanomami, o que muito provavelmente é um crime.”

Governo Bolsonaro tentou “lucrar” com garimpo ilegal

Além do ouro, garimpeiros invadem a Terra Indígena Yanomami para extrair cassiterita, minério valorizado no mercado internacional, usado na produção de ligas metálicas.

Em 2022, uma quantidade de cassiterita apreendida em operações policiais estava sob posse do governo federal. O valor total do minério estocado chegava a R$ 25 milhões, conforme cálculo do MPF.

A Agência Nacional da Mineração (ANM) pretendia leiloar os minérios extraídos ilegalmente do território Yanomami e revertê-los ao orçamento geral da União.

“Para o MPF era uma excrescência, um absurdo que o Poder Executivo Federal, que deveria cumprir a Constituição e defender as áreas indígenas, estaria lucrando, como se fosse uma espécie de consórcio, com o próprio descumprimento do dever”, disse o procurador Matheus de Andrade Bueno, do MPF de Roraima.

“Isso é algo gravíssimo que desestimula que as decisões judiciais [de expulsão de garimpeiros] sejam cumpridas”, prosseguiu Bueno.

O procurador entrou na Justiça e pediu que, se o leilão acontecesse, o dinheiro fosse revertido exclusivamente para ações de combate ao garimpo ilegal. A Justiça acatou o pedido liminar, mas o leilão da cassiterita nunca aconteceu.

“Essa é mais uma decisão [judicial] que nós conseguimos que não foi implementada. Ontem mesmo nós fizemos uma nova petição, pedindo que fosse aplicado multa para obrigar que o leilão realmente acontecesse. Esse caso é mais um em que nós conseguimos uma ordem judicial. Mas existe uma grande distância entre a ordem [judicial] e alteração da realidade”, disse o procurador.

Outro lado

A reportagem não localizou o contato do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), dos ex-presidentes do Ibama, Eduardo Bim, e da Funai, Marcelo Xavier, nem dos antigos gestores da Sesai.

Pelo aplicativo de mensagens Telegram, Bolsonaro chamou a crise humanitária no território Yanomami de “farsa da esquerda” e disse que “os cuidados com a saúde indígena” foram “uma das prioridades do governo federal”.

No Twitter, Xavier escreveu que “muitas mentiras estão sendo divulgadas”. “Um lamentável problema que passa por vários Governos desde a década de 80. Em nossa gestão, dentro das nossas possibilidades, aumentamos o investimento, operações e fiscalizações. Gostaria de ver os números dos Governos anteriores!?”, postou na rede social.

Brasil de Fato 

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