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Economia

Taxar grandes fortunas é tarefa imensa do governo Lula, diz Elias Jabbour

Professor de Ciências Econômicas da UERJ explica que debate sobre reformas deve acontecer "com o país crescendo 5%"
20/12/2022 | 17h00

O novo governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) ainda nem começou e a disputa entre liberais e desenvolvimentistas já tomou o país. Enquanto emissários do “mercado” criticam gastos sociais, membros da gestão Lula tentam dar fôlego a promessas feitas durante a campanha, como o Bolsa Família no valor de R$ 600 e a valorização real do salário mínimo.

Na última semana, Fernando Haddad (PT), novo ministro da Fazenda, deu declarações de que foi incumbido por Lula para levar adiante uma missão: colocar os pobres no orçamento e os ricos no imposto de renda.

A tarefa, no entanto, será “imensa”, segundo o geógrafo Elias Khalil Jabbour. Com as declarações, afirma Jabbour, “Lula está tentando explicar que colocar os ricos no imposto de renda não é buscar equilíbrio fiscal, mas buscar uma menor desigualdade social no Brasil”.

“Até porque, todo mundo que estuda economia sabe que o financiamento do investimento de grandes empreendimentos no Brasil, que serão necessários para os próximos anos, não virá dessa redistribuição de renda, mas sim de bancos públicos, de outras fontes que não são orçamentárias”, completa Jabbour, professor de Ciências Econômicas da UERJ (Universidade Estadual do Rio de Janeiro).

Convidado desta semana no BDF Entrevista, Jabbour explica que “o Brasil é um país tão atrasado do ponto de vista do pensamento das suas classes dominantes que o fato delas se imaginarem sendo taxadas pelos seus ganhos, lucros e dividendos já causa um horror estranho”.

“Isso é um case brasileiro porque, por exemplo, na Europa, a taxação de grandes fortunas é uma realidade. Nos Estados Unidos, que é o país onde todos eles se inspiram enquanto sociedade, enquanto modelo de sociedade, a herança, por exemplo, é taxada em 40%. Aqui é 4%.”

Outro tema que deve bater às portas logo que o novo governo assuma o Palácio do Planalto é a agenda de reformas. Segundo Jabbour, este não é o momento de se discutir reformas como a trabalhista e previdenciária, por exemplo.

“Eu não tenho nenhum problema em discutir equilíbrio fiscal, em discutir reforma trabalhista, discutir reforma previdenciária, desde que o país esteja crescendo 4%, 5% ao ano, e com uma taxa de investimento de 20%, 25%. Por quê? Porque você discute essas questões em um momento em que a classe trabalhadora está numa situação de barganha maior do que a atual”, explica o professor.

“Qualquer reforma no sentido de mudar algum marco institucional na economia brasileira, e que leva, inclusive, a mudança da dinâmica de acumulação, ela sempre será prejudicial à classe trabalhadora quando estamos em um estado que tem de 10% a 12% de desempregados, fora os 56 milhões de pessoas que estão pra lá e pra cá pra vender o almoço e comprar a janta”, completa.

Na conversa, o geógrafo fala ainda sobre a relação do Brasil com os BRICs (bloco de países emergentes formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), o fortalecimento do Mercosul e dos países da América Latina durante o governo Lula e sobre a posição da China em um novo mundo multipolar.

“Os Estados Unidos, em dez anos, construíram uma capacidade de isolar a China de suas exportações e importações no mar do sul da China, construiu uma força militar suficiente para bloquear a China naquela região. Então, quando a gente fala que a China está se tornando mais agressiva, passa essa imagem de que tem porta-aviões dos chineses no golfo do México, o que não é verdade”, explica.

“O que existe é que a China está cercada por bases militares americanas e que existe uma ingerência direta dos Estados Unidos nos seus assuntos internos, seja Hong Kong, seja Taiwan. Os americanos não param de vender armas para Taiwan e hoje fala-se abertamente, nos círculos do imperialismo, que os americanos podem intervir em uma eventual invasão da China sobre Taiwan”, afirma o professor.

Confira a entrevista na íntegra sobre taxação de grandes fortunas:

Brasil de Fato: O governo Lula já começa a tomar corpo. O Fernando Haddad foi escolhido para o Ministério da Fazenda e, óbvio, gerou reações do mercado. Ele, inclusive, chegou a comentar nos últimos dias que recebeu uma missão do Lula, de colocar os pobres no orçamento e de colocar os ricos no imposto de renda. Qual é o tamanho dessa tarefa?

Elias Khalil Jabbour: É imensa. No sábado retrasado, um dos principais economistas do campo neoliberal no Brasil, o Marcos Lisboa, fez uma robusta matéria na Folha de São Paulo, explicando porque a taxação de grandes fortunas não iria dar os resultados fiscais esperados no Brasil.

A grande questão que eu vejo é que, se nós entrarmos nessa discussão de que nós vamos usar a taxação de grandes fortunas como forma de buscar equilíbrio fiscal, nós perdemos a discussão. Eu acho que o nosso foco deve ser o que o Lula está tentando fazer e explicar que colocar os ricos no imposto de renda não é buscar equilíbrio fiscal, mas buscar uma menor desigualdade social no Brasil.

Até porque, todo mundo que estuda economia sabe que o financiamento do investimento de grandes empreendimentos no Brasil, que serão necessários para os próximos anos, não virá dessa redistribuição de renda, mas sim de bancos públicos, de outras fontes que não são orçamentárias.

Agora, o Brasil é um país tão atrasado do ponto de vista do pensamento das suas classes dominantes que o fato delas se imaginarem sendo taxadas pelos seus ganhos, lucros e dividendos já causa um horror estranho. E isso é um case brasileiro, porque, por exemplo, na Europa, a taxação de grandes fortunas é uma realidade. Nos Estados Unidos, que é o país onde todos eles se inspiram enquanto sociedade, enquanto modelo de sociedade, a herança, por exemplo, é taxada em 40%. Aqui é 4%.

Teve até uma época que, quando o Brasil estava para entrar na OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) – ainda bem que não aconteceu isso -, a deputada federal Carla Zambelli (PL) foi brincar conosco: “olha, pro PT, a esquerda é Foro de São Paulo, o nosso governo é OCDE”. E teve alguém que respondeu no Twitter dela, dizendo o seguinte: “então vamos taxar os ricos como a OCDE taxa”.

Então, acho que é uma grande ousadia do governo Lula, porque eu acho que você começa o enquadramento político que pode abrir relevo para transformações mais de fundo no Brasil, porque você vai estar quebrando o tabu, você taxar rico no Brasil é um tabu muito grande. Qualquer coisa no Brasil ainda vira comunismo, é uma coisa que é muito impressionante.

Mas eu acho que vai haver essa taxação, até porque interessa aos estados hoje uma reforma tributária, porque os estados foram altamente onerados durante o governo Bolsonaro para bancar a redução do preço da gasolina. E isso abre caminhos para uma discussão que está colocada, e o próprio relator do Orçamento no Senado tem apontado para essa direção.

Eu acho que a tarefa da reconstrução do país, e que envolve a taxação de grandes fortunas, ela é geracional, mas também, ao mesmo tempo, nunca houve tanto espaço político para essa discussão no Brasil, por conta da situação fiscal dos estados.

Ainda falando sobre o Brasil, mas fazendo um paralelo com a China, vi um comentário teu nos últimos dias sobre a dívida pública chinesa, como ela é utilizada para o desenvolvimento do país. E a dívida pública brasileira é, talvez, um dos principais assuntos dos liberais hoje, muitos deles que, inclusive, tiveram que votar no Lula nesta eleição. A dívida pública brasileira é de pouco mais de 70% do PIB e não representa um risco grande, mas o mercado tem batido nessa tecla todos os dias. Por que, Elias?

Eu tendo cada vez menos a acreditar que o mercado esteja preocupado com a dívida pública. É muito claro que eles falam isso o tempo inteiro, que eles usam isso como uma cortina de fumaça. Não é possível que eles acreditem, apesar deles produzirem artigos científicos provando o contrário, a partir de formulações matemáticas, que um país pode quebrar na sua própria moeda.

Eu acredito que eles usam isso como uma tática política para que essa onda de taxação de grandes fortunas, de lucros e dividendos, não chegue aqui no Brasil. Eles não querem ser taxados, porque eles são convencidos de que quem gera emprego e renda no Brasil são eles e não a demanda.

Tem também essa discussão, que é duramente teórica, de que quem gera emprego no Brasil é empresário. A gente tem que parar de ouvir esse tipo de coisa, esse tipo de afirmação, e não responder a altura. O que gera emprego no Brasil é demanda. Então eles usam isso, do meu ponto de vista, para não colocar no centro da discussão qual é o papel deles na sociedade, de fato.

Ou seja, o papel fiscal deles na sociedade, o papel da riqueza que eles constroem em cima do trabalho alheio, inclusive da transferência de renda do setor produtivo para o setor financeiro, não retorna para o setor produtivo. É como se você extraísse a mais valia da sociedade durante X tempo, um ano, e 30% dessa mais valia da sociedade não retornasse como o investimento e sim como o lucro e dividendo, diretamente para o bolso de quem nada produz.

E outro ponto é que eu acho que a esquerda, o nosso campo em particular, precisa começar a discutir o que é uma moeda pública e o que é uma moeda privada. Por quê? Porque hoje no Brasil a emissão monetária, ou seja, a geração de dívida, por exemplo – vamos usar um termo meio vulgar – a emissão monetária e a precificação da moeda, ela é responsabilidade de algumas figuras que hoje não tem nem vergonha na cara mais.

Elas saem dos bancos, vão para o Comitê de Política Monetária (Copom, órgão do Banco Central), ficam lá em um mandato de dois, quatro anos, e voltam para os bancos. E os bancos são os maiores interessados em uma taxa de retorno maior dos títulos da dívida pública. Por quê? Porque boa parte da lucratividade dos bancos advém desse lucro em cima da taxa de juros, da Selic.

Que foi o caso do Paulo Guedes, por exemplo. Que foi sócio do BTG e tem contas fora do país…

Total. Então, a moeda hoje no Brasil é anti-híbrido. Oficialmente ela é pública, mas é privada. Enquanto que em outros países, vou falar da China, a moeda é pública, ou seja, a moeda é vista pelo Estado, pela sociedade como um bem público. E como um bem público, a moeda deve existir para dar retorno à sociedade sob a forma de bens e serviços. Aqui no Brasil, não, a moeda acaba sendo uma mercadoria, um meio de troca. Não existe uma visão mais holística, mais de conjunto do que é a moeda.

E acho que é fundamental as esquerdas do Brasil tomarem conta dessa discussão e terem pé dessa discussão. Porque os neoliberais nadam de braçada nesse tema da moeda. O Marcos Lisboa colocou em termos o seguinte: “olha, como existe muita coisa que é carimbada no orçamento, X ou Y vai para estados e municípios, então não vai adiantar usar taxa de lucros e dividendos”. Ou seja, é um argumento muito forte. Então, eu creio que, da nossa parte, nós devemos ter condições de enfrentar intelectualmente esse pessoal, que são muito preparados.

A ideia do liberalismo, que tomou conta do Brasil principalmente na Nova República, desde os governos Fernando Henrique vem sendo a esteira principal da economia, independente se o governo é um pouco mais progressista, ou um pouco mais conservador. É possível virar essa chave, Elias?

Uma pergunta que não é fácil de responder, porque no nosso campo político, por exemplo, mesmo as pessoas muito sérias da esquerda brasileira, não vou citar nomes aqui, mas intelectuais e tal, eles levam a sério essa questão fiscal, eles levam a sério essa questão da dívida pública e têm isso com uma métrica, de que o país não pode se endividar muito, tem que ter muito equilíbrio fiscal.

Os mais reticentes, mais próximos de nós, dizem: “olha, temos que buscar algum nível de equilíbrio fiscal”. Só que, o que acontece? Eu tenho falado nas minhas apresentações, nas minhas aulas, que eu não tenho nenhum problema em discutir equilíbrio fiscal, em discutir reforma trabalhista, discutir reforma previdenciária, desde que o país esteja crescendo 4%, 5% ao ano, e com uma taxa de investimento de 20%, 25%.Por quê? Porque você discute essas questões em um momento em que a classe trabalhadora está numa situação de barganha maior do que a atual, por exemplo.

Então, qualquer discussão sobre reforma tributária, sobre equilíbrio fiscal, reforma trabalhista, reforma da previdência, ou qualquer reforma no sentido de mudar algum marco institucional na economia brasileira, e que leva, inclusive, a mudança da dinâmica de acumulação, ela sempre será prejudicial à classe trabalhadora quando estamos em um estado que tem de 10% a 12% de desempregados, fora os 56 milhões de pessoas que estão pra lá e pra cá pra vender o almoço e comprar a janta.

Vamos discutir tudo isso, mas vamos voltar a crescer primeiro. Porque se o país volta a crescer, a dívida pública diminuirá, inclusive, com a volta do crescimento econômico. A história demonstra que a dívida pública nunca foi impedimento para um país crescer, até porque para um país crescer, o Estado precisa gerar demanda para o setor privado. Não existe caso na história em que o setor privado foi o primeiro a investir, foi o primeiro a colocar o dele na reta.

Eu não falo isso porque eu sou de esquerda, eu não falo isso porque eu sou “stalinista”, não falo isso porque eu sou simpático de um Estado poderoso, nada disso. Aliás, eu acho que existem, por exemplo, setores da economia que podem ser privatizados para o capital privado nacional, diga-se de passagem. E outros que devem ser estatizados. Se eu tenho uma característica como pensador, é que eu sou uma figura completamente desprovida de qualquer dogma. Seja de direita ou de esquerda.

A ideia da criação de um teto de gastos, que veio no pós-golpe de 2016, contraria totalmente essa visão de desenvolvimento que talvez o Haddad tenha começado a colocar em prática dando essas declarações. É possível derrubar o teto e, de repente, colocar algum marco regulatório no lugar? Ou nós vamos ter que manter essa ideia do teto por muito tempo?

Não. Primeiro que, nem se nós quiséssemos, seria possível manter o teto de gastos, porque ele é insustentável. O Temer não cumpriu o teto de gastos, o Bolsonaro furou oito vezes e estava certo, na minha opinião. É incrível ver gente de esquerda bater no Bolsonaro porque ele furou o teto. Agora, o melhor é não ter teto nenhum, assim como não ter meta de inflação, na minha opinião.

Agora, a correlação de forças da sociedade no Congresso não permite que você acabe com o teto de gastos amanhã, ou mesmo mudar a temporalidade das metas de inflação de um para três anos, que seria fundamental para o Brasil. O que hoje se permite é a discussão de um outro marco fiscal, algo que alivie muito essa camisa de força.

É importante que tenhamos uma correlação de forças para mudanças profundas na dinâmica de acumulação da economia brasileira, principalmente essa dinâmica de acumulação que foi reinaugurada com o governo Dilma. Porque não foi somente o golpe. O que existe em 2016 é uma mudança de dinâmica de acumulação baseada na superexploração da mão de obra.

Essas mudanças são geracionais. Elas não vão acontecer em quatro anos, muito pelo contrário. Em quatro anos, dado o grau de destruição que o Estado nacional se encontra, eu acredito que se nós mantivermos a frente ampla em pé e tivermos um candidato competitivo para as próximas eleições, já é uma grande vitória. E evidente que algumas ações pontuais no sentido de geração de empregos no Brasil como, por exemplo, a retomada das 38 mil obras paradas que o Brasil tem hoje e que o teto de gastos impede que essas obras sejam executadas. E isso pode gerar milhões de empregos no Brasil.

O fortalecimento dos BRICs, mesmo após os conflitos geopolíticos dos últimos anos, ainda é possível? Qual sua relevância no mundo de hoje?

Primeiro, eu queria fazer um comentário anterior à resposta. Hoje está todo mundo falando do Brasil voltar ao mundo, virou até uma frase de efeito. E eu acho que nós precisamos precificar essa volta ao mundo. Nós não vamos voltar ao mundo porque somos um Brasil grande, um país importante, um país relevante. Nós vamos voltar ao mundo com o preço, que deveria ser a reindustrialização do Brasil.

Nós temos que ter clareza estratégica de observar os nossos objetivos de longo prazo e a volta ao mundo como parte desses objetivos estratégicos. Dito isso, é evidente que os BRICS têm relevância, mas não somente o BRICS, mas o BRICs Plus, que envolve a Indonésia – que vai ser uma potência do século 21 -, envolve a Turquia, envolve a Argentina, envolve a Arábia Saudita, envolve o México.

São vários países que vão fazer parte desse bloco, que vai acabar se constituindo em um bloco ultragemônico capaz de subverter toda aquela ordem financeira criada no âmbito de Bretton Woods, baseado no FMI e no Banco Mundial, que hoje são instrumentos de dominação americana no mundo.

Eu acredito que a tendência é aumentar o papel dos BRICs, mas nós temos que ter a ideia muito clara do que a volta do Brasil ao mundo representa, e o preço dela. Eu sou muito pragmático com essas coisas. Para mim, o preço é a nossa reindustrialização.

E justamente os BRICS foram um dos catalisadores da pressão internacional dos Estados Unidos, por exemplo, contra o Brasil e contra outros países do bloco. Se criava, naquela época, a ideia do banco dos BRICS e uma moeda que fosse comum aos países do bloco. Isso pode sair do papel? A ideia talvez se constituísse em um avanço significativo em relação a dependência do dólar, por exemplo, da Argentina.

O caso da Argentina virou um caso clássico, ao meu ver, de que primeiro tem que haver uma união Sul-americana de nações e que, segundo, precisa haver um processo lento, gradual e seguro de uma unificação monetária da América do Sul. Não como essa nos moldes da União Europeia, porque lá envolve uma unicidade de política fiscal que desfavorece os países da periferia da Europa.

Mas acho que tem que ser pensado isso. Acho que o Brasil tem que alcançar um grau de intimidade com a Argentina semelhante ao grau que a China e a Rússia têm hoje, de intimidade, de quase unidade na política externa, a ponto dessa questão argentina, da restrição externa, da falta de dólares, ser resolvida em âmbito regional.

Claro que a entrada da Argentina nos BRICS é fundamental para que ela resolva os seus problemas. E não é do interesse do Brasil ter uma Argentina enfraquecida, muito pelo contrário, porque a Argentina ainda é nosso maior mercado de manufaturados – acho que a China já nos passou. Nós temos que enfrentar essa questão da integração regional, que vai salvar a Argentina e o resto do continente. Para isso, o Brasil precisa voltar a crescer imediatamente.

Agora, essa moeda dos BRICS, eu acredito que isso pode vir a acontecer, só que eu não sou uma figura idealista. Eu acho que se a China continuar exportando para a América Latina imensos bens públicos, como trens de alta velocidade, portos, aeroportos, estradas, e nós conseguimos barganhar com a China – nós enquanto América do Sul e América Latina – a transferência dessas tecnologias, eu acho que vai ser algo simplesmente revolucionário nas relações internacionais, porque os americanos vão perder completamente o protagonismo aqui na América Latina. Mas, para isso, o Brasil precisa ter uma visão estratégica.

Os líderes dos países da América Latina disseram durante todo o processo eleitoral, e também depois dele, sobre a importância do Brasil para o Continente, como o Brasil seria, de fato, um motor para o crescimento dos demais. Há a expectativa de que o Mercosul seja fortalecido agora. Ainda há espaço para o bloco, mesmo com essa sombra de um BRICs ampliado?

Eu não tenho acompanhado muito o grupo de transição de Relações Exteriores, mas o Mercosul é prioridade histórica do Brasil, desde o primeiro governo Lula. Mas eu vejo uma disputa nessa política externa no Brasil. Eu acho que a ação de ONGs estrangeiras, por exemplo, aqui na América Latina, como a Open Society e a Fundação Ford, e a influência que essas fundações têm exercido nas esquerdas na América Latina é muito forte.

E isso tem se materializado em um discurso contra Cuba e contra a Venezuela, como é o caso do Chile, ou os discursos que relativizam nossa soberania sobre a Amazônia. Essa história da COP-27, do Lula ter chamado o mundo a ajudar a proteger a Amazônia, demonstra também que existe uma disputa na política externa brasileira, muito em função da influência que essas ONGs estrangeiras têm aqui na América Latina.

E eu falo isso não como forma de denúncia, mas sim como constatação do quão danoso aos nossos interesses é a existência e o funcionamento de uma Open Society aqui, dando nomes e letras aos bois, cooptando intelectuais da esquerda, financiando esses intelectuais e levando a uma desradicalização de muitos deles.

Na verdade, o Brasil precisa fundamentalmente de um projeto nacional de desenvolvimento e muitas vezes esses intelectuais, influenciados por uma linha – não vou falar globalista, porque é muito bolsonarista – mas que não atende e não tem relação com os interesses estratégicos do Brasil, esses intelectuais acabam pensando mais em termos de democracia, de instituições, e menos em um projeto nacional de desenvolvimento e em relações profundas com países como a China, a Rússia, a Índia.

A China costumava se manter distante, ao menos belicamente, dos conflitos geopolíticos. E isso tem fugido à regra nos últimos anos. Ela tentou se manter neutra logo no começo da questão Rússia x Ucrânia, mas logo depois tomou um lado do conflito. Aí veio Hong Kong, que se tornou um problema novamente, Taiwan também. Agora, surgiram conflitos na fronteira com a Índia, novamente. Como a China tem se colocado geopoliticamente no mundo agora? É parte da estratégia mostrar mais força bélica?

Não. A China apenas está se defendendo. O caso da Índia é um caso particular, porque é um caso que já tem mais de mil anos de problema. Mas nos casos de Taiwan e Hong Kong, a China está apenas se defendendo. Ela não está atacando, não está ameaçando, ela está apenas se defendendo.

Pra você ter uma ideia, os Estados Unidos, em dez anos, construíram uma capacidade de isolar a China de suas exportações e importações no mar do sul da China, construíram uma força militar suficiente para bloquear a China naquela região. Então, quando a gente fala que a China está se tornando mais agressiva, passa essa imagem de que tem porta-aviões dos chineses no golfo do México, o que não é verdade.

O que existe é que a China está cercada por bases militares americanas e que existe uma ingerência direta dos Estados Unidos nos seus assuntos internos, seja Hong Kong, seja Taiwan. Os americanos não param de vender armas para Taiwan e hoje fala-se abertamente nos círculos do imperialismo que os americanos podem intervir em uma eventual invasão da China sobre Taiwan.

Porque se passa a ideia para as pessoas que o conflito entre Rússia e Ucrânia é semelhante ao de Taiwan e China, coisa que não é verdade. Taiwan é parte da China. Apenas seis ou sete países do mundo reconhecem Taiwan como um país independente. É o que eu chamo de gaslighting semiótico. Apresenta-se algo pra gente e tentam te convencer de que você está louco, que você está lendo outra coisa, que Taiwan é um ente separado da China.

A capa da The Economist da semana retrasada fala em “China’s covid failure”, ou seja, que falhou a política de covid zero da China. E quando você vai ver um gráfico de morte nos Estados Unidos, tem um milhão de mortes e seis mil na China. É chamar a gente de louco, porque o gráfico diz outra coisa em relação à capa da revista.

Não estou aqui passando pano pra China, não é isso. Mas imagine você, por exemplo, se a China começar a fazer hoje declarações de que vai apoiar um processo de independência de Porto Rico em relação aos Estados Unidos? Você imagina o escândalo internacional que seria isso? E a China não se mete nisso, enquanto os americanos mandam uma delegação para Taiwan. A Nancy Pelosi foi para Taiwan e eles continuam vendendo armas.

É a era da pós-verdade, ou seja, a China virou um país imperialista e os americanos continuam sendo o país que vai trazer a paz e a estabilidade mundial, quando é o contrário, o caos virou instrumento do governo por parte dos Estados Unidos.

Brasil de Fato

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