ICL Notícias

Por Ayam Fonseca*

Em uma carta aberta dirigida ao ministro das Relações Exteriores, Mauro Vieira, e à diretora do Instituto Rio Branco, embaixadora Mitzi Gurgel Valente da Costa, a Educafro Brasil mais uma vez denuncia as falhas do sistema de cotas do Concurso de Admissão à Carreira de Diplomata (CACD) do Itamaraty, e pede um processo de heteroverificação mais justo.

No texto divulgado hoje, a Educafro Brasil descreve como os problemas no sistema de cotas e a falta de vontade do Itamaraty têm prejudicado a população negra que sonha em se tornar diplomata. Segundo a entidade, desde sua implementação, em 2002 — com a política de bolsas, e posteriormente com o sistema de cotas que reserva 20% das vagas para pessoas pretas, em prática desde 2014 –, o sistema apresenta falhas que dão brechas para que pessoas pardas-brancas ocupem as vagas destinadas às pessoas negras.

De acordo com o grupo, o processo, feito da forma atual — exigindo apenas uma audeclaração e uma entrevista com a banca de heteroverificação –, permite fraude, tendo, apenas no último CACD, 4 candidatos apontados pela Educafro como potenciais fraudadores de cotas raciais. Esses candidatos, além de não possuírem “traços fenotípicos negros”, haviam participado do concurso anteriormente, porém inscritos como brancos.

Palácio do Itamaraty, em Brasília (Foto: Agência Brasil)

O Frei David Santos, diretor-executivo da Educafro Brasil, ferrenho defensor das cotas, já havia denunciado no ICL Notícias a ineficácia, a incoerência e a desonestidade do processo de cotas no CACD, que tem se mostrado desfavorável aos candidatos pretos e pobres, exigindo fluência em três idiomas, quatro dias de provas que duram 9 ou 10 horas por dia — algumas dessas provas sendo em dias úteis –, e convocação para entrevistas presenciais em Brasília com apenas 15 horas de antecedência. Desta vez, o grupo destacou a fraqueza da banca heteroverificação.

“A banca de heteroidentificação elimina os candidatos/as que não foram considerados negros. Estes eliminados, sabendo do despreparo dos juízes e da falta de letramento racial, conseguem liminares determinando que o Itamaraty prejudique o povo negro. O Itamaraty tem sido eficiente na defesa desta política? Vamos avaliar: tirar um negro e colocar um branco ou pardo-branco, por determinação judicial é, no mínimo, não compreender amplamente o objetivo da política”, afirma o grupo.

A Educafro pede que seja atendida qualquer liminar — que é um ato jurídico provisório — sem remover a pessoa afro, e que o corpo jurídico do Itamaraty brigue juridicamente, até à última instância. “Isso é verdadeiramente defender e se comprometer com uma política pública”, concluem.

Consequências à comunidade afro

A Educafro também alertou que a atitude do Itamaraty vem trazendo graves consequências à comunidade negra. Ela chama atenção para o abalo que o concurso causa na saúde mental desses indivíduos, e o impacto financeiros que gera para suas famílias.

“É inaceitável saber que pessoas negras tenham de passar por todas as agruras impostas por uma sociedade racista e que, ao alcançar um objetivo profissional, ainda tenham que enfrentar mais um obstáculo, dessa vez por meio de uma decisão judicial que revela pouco conhecimento do racismo estrutural e do oportunismo afro conveniente”, pontuam.

Leia abaixo a íntegra da carta aberta da Educafro:

Sabemos que o Concurso de Admissão à Carreira de Diplomata (CACD) é um dos certames mais desafiadores para um candidato preto e pobre, em razão tanto do amplo conteúdo programático como do conhecimento de línguas estrangeiras. O mais importante professor de direito da Universidade de Harvard lançou um livro (já traduzido para o português) cujo título é “A TIRANIA DO MÉRITO”. Ele afirma, com toda sua autoridade como um dos juristas mais lidos do mundo, que o concurso do Itamaraty é tirânico com os mais pobres e em especial com os afro-brasileiros. O Itamaraty e os órgãos que produzem este processo seletivo precisam ler e debaterem, na íntegra, cada parágrafo deste livro. A consequência é termos no concurso de 2025 menos tirania e mais justiça.

O início da democratização no Itamaraty se deu por meio da implementação da política de bolsas e, em seguida, de cotas, que reserva 20% das vagas para pessoas pretas. Está dando novos passos, mas ainda não atende à IGUALAÇÃO ENTRE BRANCOS E NEGROS, como exige a Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância. Veja, estude e debata em todos os grupos, o conteúdo deste documento.

Ocorre que, desde o início da implementação destas ações afirmativas, observa-se candidatos/as pardos-brancos/as, que nunca sofreram opressão da polícia (que é a mais forte e eficiente confirmação de quem é negro) fazerem uso da política de cotas para negros, impedindo a entrada dos candidatos/as destinatários/as desta política de reparação.

O CACD de 2024 reproduz os anteriores: a banca de heteroidentificação elimina os candidatos/as que não foram considerados negros. Estes eliminados, sabendo do despreparo dos juízes e da falta de letramento racial, conseguem liminares determinando que o Itamaraty prejudique o povo negro. O Itamaraty tem sido eficiente na defesa desta política? Vamos avaliar: tirar um negro e colocar um branco ou pardo-branco, por determinação judicial é, no mínimo, não compreender amplamente o objetivo da política.

Que se atenda a qualquer liminar (que é um ato jurídico provisório) sem remover a pessoa afro. E, o corpo jurídico do Itamaraty deve brigar juridicamente, até à última instância. Isso é verdadeiramente defender e se comprometer com uma política pública.

Um irmão afro, de nossa comunidade, está disposto a fazer, na sua tese de doutorado, um estudo sobre a garra ou ausência de garra do jurídico do Itamaraty, na defesa desta política pública.

A atitude vacilante do Itamaraty está trazendo graves consequências e penalizando a comunidade afro. Vejam:

  • A saúde mental de todos/as os/as candidatos/as negros está bastante abalada;
  • As famílias dos candidatos negros, que gastaram o que não podiam, estão quase falidas;
  • A comunidade negra está tensa e apreensiva, com sinais fortes de saúde mental abalada;
  • É inaceitável saber que pessoas negras tenham de passar por todas as agruras impostas por uma sociedade racista e que, ao alcançar um objetivo profissional, ainda tenham que enfrentar mais um obstáculo, dessa vez por meio de uma decisão judicial que revela pouco conhecimento do racismo estrutural e do oportunismo afro conveniente.
  • As celebrações de fim de ano dos candidatos afros foram trocadas por tensões e insegurança geradas pela má condução do Itamaraty deste quadro caótico. Exemplo: de manhã divulga no diário oficial o nome de uma pessoa negra como classificada e no dia seguinte divulga outra lista, incluindo nome de pessoas que entraram com liminares e excluindo pessoas afros. Isso é justo?

Diante deste quadro de tortura, solicitamos ao Itamaraty que tenha uma postura mais justa com o trabalho das bancas de heteroverificação, (empossada pela própria instituição) e com os direitos à inclusão do povo afro. Se algum branco ou pardo-branco conseguiu liminar, que se abra uma nova vaga provisória, sem tirar a vaga de nenhum negro. O erro de um juiz despreparado, não dá ao Itamaraty o direito de cometer outro erro: eliminar os verdadeiros destinatários desta ação afirmativa.

Solicitamos ao Itamaraty que nos responda com urgência e nos garanta que nenhum afro será prejudicado.

Aguardamos resposta com urgência.

*Estagiário sob supervisão de Chico Alves

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