ICL Notícias

Por Gabriel Gomes

A organização não governamental Educação e Cidadania de Afrodescendentes (Educafro) apresentou, em carta direcionada ao Ministro das Relações Exteriores, Mauro Vieira, uma proposta de conciliação nos processos que se referem ao Concurso de Admissão à Carreira de Diplomata (CACD). A organização vem denunciando falhas no sistema de cotas do certame, e pede um processo de heteroverificação mais justo.

“Estamos trazendo à mesa os pontos essenciais que podem viabilizar um diálogo, envolvendo todas as partes e trazendo boas soluções para os envolvidos, inclusive para o próprio Itamaraty”, diz a Educafro.

Na carta, a Educafro propõe diversos pontos para a negociação, como uma mesa de conciliação com todos os autores de processos e a nomeação de 40 candidatos negros aprovados em edital complementar do concurso de 2024. Também é proposto o cancelamento do concurso de 2025, “redirecionando os recursos para inclusão de novos talentos”.

O texto também propõe a ampliação imediata dos recursos humanos do Itamaraty, “em vista dos eventos internacionais que acontecerão no Brasil em 2025”, além da formação online para os 67 candidatos que não compareceram à heteroidentificação e os 10 candidatos que não foram considerados negros.

A Educafro também pede o reforço da política altiva e ativa, da diplomacia brasileira, no enfrentamento de desafios nacionais e internacionais. “Atos corajosos como este já foram tomados nos primeiros mandatos do governo Lula em que, por pelo menos 5 edições, lançou 100 vagas de diplomatas por ano, nos respectivos concursos”, diz a carta.

“Reiteramos nossa disponibilidade para a conciliação, com a convicção de que essa solução beneficia tanto o Itamaraty quanto a sociedade brasileira, avançando na construção de uma diplomacia verdadeiramente inclusiva”, conclui a carta.

Educafro vem denunciando falhas do sistema de cotas do certame, e pede um processo de heteroverificação mais justo. (Foto: Reprodução/ Educafro)

Denúncias

A Educafro vem denunciando problemas no sistema de cotas do concurso do Itamaraty e como isso têm prejudicado a população negra que sonha em se tornar diplomata. Segundo a entidade, desde sua implementação, em 2002 — com a política de bolsas, e posteriormente com o sistema de cotas que reserva 20% das vagas para pessoas pretas, em prática desde 2014 –, o sistema apresenta falhas que dão brechas para que pessoas pardas-brancas ocupem as vagas destinadas às pessoas negras.

De acordo com o grupo, o processo, feito da forma atual — exigindo apenas uma audeclaração e uma entrevista com a banca de heteroverificação –, permite fraude, tendo, apenas no último CACD, 4 candidatos apontados pela Educafro como potenciais fraudadores de cotas raciais.

O Frei David Santos, diretor-executivo da Educafro Brasil, ferrenho defensor das cotas, já havia denunciado no ICL Notícias a ineficácia, a incoerência e a desonestidade do processo de cotas no CACD. “A banca de heteroidentificação elimina os candidatos/as que não foram considerados negros. Estes eliminados, sabendo do despreparo dos juízes e da falta de letramento racial, conseguem liminares determinando que o Itamaraty prejudique o povo negro. O Itamaraty tem sido eficiente na defesa desta política? Vamos avaliar: tirar um negro e colocar um branco ou pardo-branco, por determinação judicial é, no mínimo, não compreender amplamente o objetivo da política”, afirma o grupo.

Leia a íntegra da carta da Educafro:

“Ao Ministro das Relações Exteriores e equipe

Embaixador Mauro Vieira

I – QUALIFICAÇÃO

A EDUCAFRO Brasil, representada por sua Mantenedora, FAECIDH – Francisco de Assis, Educação, Cidadania, Inclusão e Direitos Humanos, pessoa jurídica de direito privado sem fins econômicos, com sede em São Paulo, na Rua Riachuelo, 342, CEP 01.007-000, Centro, São Paulo/SP, inscrita no CNPJ sob o nº
10.621.636.0001-04, reconhecida como organização da sociedade civil brasileira pela Organização dos Estados Americanos – OEA, vem, através da presente apresentar sugestão de conciliação nos processos que se referem ao concurso para diplomata 2024.

A EDUCAFRO Brasil entende que a diplomacia do Itamaraty é conhecida como uma das melhores do mundo. Nenhum país teve a proeza de resolver todos os problemas fronteiriços com 11 países de forma pacífica como o Brasil.

II – INTRODUÇÃO

Os processos em torno do último concurso de ingresso à carreira de diplomata, podem ser trazidos para o âmbito da negociação/conciliação. Estamos fazendo contatos informais com os autores dos demais processos contra o concurso e estamos percebendo que estão de coração aberto para sentar com o Itamaraty e, em seguida, suspender os processos judiciais. Conciliar é a essência da diplomacia. Temos a ousadia de trazer esta proposta, inspirados na diplomacia de São Francisco de Assis, em espírito de colaboração e senso de urgência.

Estamos trazendo à mesa os pontos essenciais que podem viabilizar um diálogo, envolvendo todas as partes e trazendo boas soluções para os envolvidos, inclusive para o próprio Itamaraty.

Compreendemos que o Itamaraty está vivendo um momento oportuno para reafirmar e ampliar seu compromisso com a inclusão e com as políticas de ações afirmativas. Da mesma forma estamos cientes de que o MRE enfrenta desafios logísticos e institucionais para cumprir seus compromissos de eventos internacionais em solo brasileiro.

III – PROPOSTA DE CONCILIAÇÃO

Após esta introdução, estamos apresentando alguns pontos para embasar a possibilidade para a conciliação:

1. Mesa de conciliação ampla e inclusiva:

Propomos que o Itamaraty convide todas as partes envolvidas nos processos jurídicos, relacionados ao concurso de 2024, para uma mesa de conciliação. Esses processos incluem questões sobre desigualdade entre as provas de francês e espanhol, distribuição de pontos desproporcional, divergências das bancas de heteroidentificação X recursal, correção de provas que ignorou pontos legítimos dos candidatos.

2. Solução inclusiva para os 131 candidatos/as convocados/as para heteroidentificação:

a) Dos 64 aprovados pela banca, 54 foram considerados negros. Desses últimos, 14 foram nomeados como diplomatas (10 nas vagas destinadas por cotas e 4 por atingirem notas na ampla concorrência). Propomos que os 40 restantes possam também ser convocados para serem nomeados em edital complementar ao edital do concurso de 2024, a fim de reduzir os desafios de necessidade de pessoal do MRE no atual contexto. Sugerimos visitar os argumentos de um dos maiores juristas de HARVARD, Michael Sandel, no seu
livro ”A Tirania do Mérito”. Para canções novas, ouvidos novos. Já orientava o provérbio popular.

b) Os 10 candidatos que não foram considerados como negros/as pela banca de heteroidentificação são igualmente qualificados, pois suas notas demonstram mérito e preparo para a diplomacia.

c) Os 67 que não compareceram à banca também são igualmente qualificados, mas, em geral, não puderam estar presentes por enfrentarem dificuldades logísticas, devido ao alto custo das passagens de avião e tempo exíguo de convocação (apenas 15 horas – para candidatos de qualquer lugar do Brasil e do mundo).

d) Diante disso, a Educafro propõe uma abordagem inclusiva e não-excludente. Que, além dos 40 convocados/as em edital adicional de nomeação para o concurso de 2024, lance um outro edital, encaminhando os outros 77 candidatos/as não presentes ou com a sua autodeclaração não confirmadas pela banca de heteroidentificação. Estes editais complementares irão resolver a lacuna de pessoal na diplomacia brasileira e promover justiça racial.

e) A Educafro percebeu que à medida em que se avança na lista dos candidatos/as cotistas e se analisa as fotos destes (podemos partilhar esta pesquisa), nota-se o excelente índice de pessoas com fenótipo afro que quase chegaram lá. Acolhendo esta proposta de conciliação, iremos ver o Itamaraty, mais uma vez saindo na frente, colocando em prática a ODS 18. Esse gesto vai trazer ao corpo diplomático a diversidade que, ano após ano, o Itamaraty tenta alcançar e não tem obtido êxito. Em quase todos os concursos, os melhores classificados dentre os números de vagas reservadas para negros, têm um grande índice de pardos-pardos e de pardos-claros ou brancos declarando-se negros, em expressão do entendimento do voto do ministro Lewandoviski, na ADPF 186. É compreensivo. Seus familiares têm, via de regra, uma vida econômica que possibilitou o pagamento de cursos caros, e uma estrutura familiar, economicamente mais sólida, o que não acontece com os pardospretos e os pretos.

3. Necessidade imediata de pessoal diplomático em 2025:

O Itamaraty terá fortes desafios de recursos humanos para o ano de 2025. O Brasil assumiu a organização da COP 30 em Belém; a presidência brasileira do BRICS expandido com realização de evento no país; a transição da presidência do G-20 para a África do Sul. Estas demandas extras requerem que é necessário ampliar seu quadro de terceiro secretário. Considerando que, para o próximo concurso de diplomata em 2025, há uma previsão de 60 vagas que só estariam preparados em 2026, propomos cancelar o certame do ano de 2025 e convocar esses 40 candidatos/as aprovados pela banca de heteroidentificação para
suprir essas demandas urgentes. O ano de 2025 é o ano com o maior potencial de treinamento prático e crescimento destes profissionais. É preciso inovar. É preciso ter coragem, a exemplo do que fez o Itamaraty – tal como declarou o chanceler Azeredo da Silveira – quando foi o primeiro país do mundo a reconhecer a independência de Angola e outros países africanos de língua portuguesa, mesmo diante da polarização da guerra fria.

4. Cancelamento do concurso de 2025 e formação online para os candidatos qualificados e remanescentes do concurso de 2024:

Propomos que o concurso de 2025 seja cancelado e os recursos redirecionados para reforçar a Política de Ações Afirmativas do MRE, concretizando a ODS 18. O Itamaraty precisa voltar a apoiar jovens afro-brasileiros, que querem iniciar os seus estudos para a carreira de diplomata. É bem sabido que os candidatos
à carreira diplomática estudam por anos. Esses candidatos atuais estão mais do que bem preparados. Uma outra estratégia de inclusão seria fornecer formação online ao longo do ano de 2025 para os 67 ausentes na
heteroidentificação e 10 não confirmados como negros, além de nomear imediatamente os 40 confirmados pela heteroidentificação. A nossa comunidade negra, tem reclamado muito do fato de que a bolsa do Itamaraty, que era, todos os anos aberta para qualquer afro brasileiro, fechou-se, desde 2017, apenas nos que prestaram o concurso no ano anterior e foram aprovados na primeira fase. É preciso voltar a possibilitar que os iniciantes também tenham chance e desafogue o gargalo com aqueles que já tentam o concurso há muito tempo.

5. Compromisso com a inclusão racial e inovação institucional:

O Itamaraty tem a oportunidade de se reinventar motivado por esses três fatos novos: a) O Brasil, através do nosso Presidente Lula lançou, na ONU, a ODS 18, voltada para acelerar a inclusão dos afros e combater o racismo em todos os países do mundo. O Presidente Lula anunciou que o Brasil será o exemplo e irá puxar esse compromisso, gerando em nosso território a aceleração da inclusão dos afro-brasileiros.

b) O Itamaraty, representando o Brasil, levou nossa reinvindicação à ONU, no sentido de relançar a DÉCADA DO AFRODESCENDENTE, uma vez que a primeira, não foi eficaz. Com os demais países que defenderam esse ponto de pauta conseguiu-se vitória.

c) Recentemente, o Brasil integrou à nossa Constituição a CONVENÇÃO INTERAMERICANA CONTRA TODA FORMA DE DISCRIMINAÇÃO E INTOLERÂNCIA CORRELATA.

Esta convenção determina que cada país signatário busque atingir a equidade/igualdade de oportunidades entre negros e brancos. A Convenção, em suas letras vivas, não vê como justa a “migalha de 20% ou 30% de inclusão (após séculos de escravidão/exclusão)”. A convenção defende a urgente nivelação de oportunidades entre negros e brancos. O Itamaraty refletindo e acolhendo esse novo olhar/encaminhamento para o concurso de 2024, estará dando exemplo para todos os demais órgãos brasileiros, motivando-os a criarem ações para potencializar a ODS 18, a CONVENÇÃO e a DÉCADA. O nosso Presidente ampliará a credibilidade do Brasil, por colocar em prática o que falou dos púlpitos da ONU.

Lembramos as palavras do chanceler Azeredo da Silveira: “A maior tradição do Itamaraty é saber inovar-se” – é justamente isso o que vai acontecer caso as propostas trazidas a esta mesa de conciliação forem acolhidas. Lembramos outra vantagem desta conciliação: eliminar os custos com a defesa jurídica destes vários processos que tramitam nos tribunais.

5. Discrepância racial no Serviço Exterior Brasileiro:

A análise do boletim étnico-racial do Itamaraty, de 2024, demonstra que o déficit de pessoas negras é gritante, em todas as classes e cargos deste ministério. A análise visual das fotos oficiais das turmas, formadas desde a Lei de Cotas em 2014, confirmam isso. Dos cerca de 6 a 7 negros que deveriam aparecer nas fotos, por turma, apenas se consegue perceber 2 ou 3 – o que muito nos preocupa. É possível ver nas fotos que esses 2 ou 3 são visivelmente negros.

6. Precedência de inclusão conciliatória no serviço público:

A solução pelo caminho da conciliação de interpretações diversas que geram processos, tem fortes fundamentos no ordenamento jurídicos e decisões. Vejamos dois casos: a) A Universidade Federal de Sergipe, após ser interpelada na justiça pelo movimento social e MPF, aceitou ir para a mesa de conciliação, com resultados muito positivos para todos. A metodologia de determinação de quais vagas iriam para professores titulares negros/as, estava ferindo a lei de cotas raciais. Na conciliação a UFS concordou em abrir novas 41 vagas para professores e professoras negras.

b) A universidade Federal de Pelotas consultou a Advocacia Geral da União (AGU), após ser interpelada por entidades sociais. A AGU fez um parecer dando segurança jurídica à Universidade. As Universidades e a sociedade tem ganhado com isso, pois pôde se alinhar com o ODS 18 da Agenda 2030 e também com as premissas da Convenção Contra o Racismo e Intolerâncias Correlatas. 

IV – RESUMINDO:

– Acolher uma mesa de conciliação com todos/as autores de processos.
– Nomear os 40 candidatos/as negros/as aprovados/as, em edital complementar do concurso de 2024.
– Formação online para os 67 candidatos/as que não compareceram à heteroidentificação e os 10 candidatos/as que não foram considerados negros. Esses fariam seus ingressos em 2026.
– Cancelamento do concurso de 2025, redirecionando os recursos para inclusão de novos talentos.
– Ampliação imediata dos recursos humanos do Itamaraty, em vista dos eventos internacionais que acontecerão no Brasil em 2025.
– Reforço da política altiva e ativa, da diplomacia brasileira, no enfrentamento de desafios nacionais e internacionais. Atos corajosos como este já foram tomados nos primeiros mandatos do governo Lula em que, por pelo menos 5 edições, lançou 100 vagas de diplomatas por ano, nos respectivos concursos.
-Há precedente no serviço público, como é exemplo o parecer da AGU em relação as vagas para professores negros na UF Pelotas – RS.

V – CONCLUSÃO

Reiteramos nossa disponibilidade para a conciliação, com a convicção de que essa solução beneficia tanto o Itamaraty quanto a sociedade brasileira, avançando na construção de uma diplomacia verdadeiramente inclusiva. Estamos à disposição para uma reunião de conciliação presencial ou online.

Com fraternidade e esperança,

Frei David Santos, OFM”

 

 

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