A despeito do resultado do pleito eleitoral por uma das prefeituras mais importantes do mundo, é preciso que a esfera pública se movimente no sentido de debater abertamente, e sem moralismos, um mundo invariavelmente cheio de drogas e seus respectivos usos, sejam eles práticos ou morais. Explico: uma das grandes artimanhas da campanha coaching-fascista de Pablo Marçal foi alegar que o candidato mais importante da esquerda na disputa pela prefeitura de São Paulo, Guilherme Boulos, seria usuário de cocaína. Durante os debates, o coach-fascista fazia gestos provocando Boulos e a audiência, simulando e sugerindo que o candidato do PSOL seria um “cheirador.” A artimanha do pânico moral e moralista atingiu seu auge quando Marçal publicou, na noite do dia 4 de outubro, um laudo falso em que Boulos teria dado entrada numa clínica por conta do uso da substância.
Cabe aqui algumas breves considerações sobre as muitas variáveis da questão. A primeira é de ordem histórica, afinal, se há algo constante na história da humanidade, essa constância é o uso de substâncias que alteram nosso estado límbico, nossas sensações e emoções. Desde a cerveja no mundo do Oriente Próximo, há milhares de anos, aos sintéticos derivados de substâncias retiradas da natureza desde o século 19, as sociedades estabeleceram e estabelecem diversos ritos e critérios para o uso de drogas que entorpecem a chamada razão, seja por conta de rituais mágico-religiosos, seja por conta das muitas formas de consumo e consumismo reiterados pela sociedade capitalista.
Estimulantes como chá e café estiveram na base da expansão da economia mundial capitalista quando o mundo europeu vivia a Revolução Industrial dos séculos 18 e 19. Afinal, era preciso acelerar as consciências da classe trabalhadora para que a mesma desse conta da divisão brutal na ordem da produção fabril. Excitantes para acelerar a mente, o corpo e, assim, mais eficiência e rapidez na produção de mercadorias. Extenuados e explorados durante horas a fio, restava depois ao trabalhador/trabalhadora usar uma droga depressora, como gin, run, aguardente, enfim, altas doses de bebida alcoólica para “domar” a dor material e existencial. Basta assistir “Tempos Modernos”, de Charlie Chaplin, para perceber ali toda a “loucura” da razão capitalista.
Com efeito, ao longo do século 20, a virtude no equilíbrio das substâncias se tornou quase impossível. Num mundo cada vez mais pautado pela lógica da mercadoria, muitas substâncias foram criadas para não apenas acelerar mentes, corpos e produção, mas também supostamente “libertar” os sujeitos das muitas dores do mundo. Vale dizer, para entorpecer os sentidos, em busca de um refúgio — mesmo que temporário — dos problemas sociais, do autoritarismo, da violência dos traumas, enfim, de toda sorte de questões que envolvem uma sociedade do consumo cada vez mais adoecida, depressiva. Ela mesma uma sociedade tóxica, cuja droga maior é sua própria estrutura desigual e excludente.
É preciso deixar evidente aqui que o uso de substâncias lícitas e ilícitas para entorpecer os sentidos não é apenas uma decorrência das mazelas do capitalismo. Mas parte de uma condição humana que sempre fez uso daquilo que retira da própria natureza. A discussão que deve ser feita, portanto, não é aquela moralista, proibicionista ou qualquer uma que caia no âmbito do “pânico moral” apregoado pela Extrema-Direita. O apelo que tal estratégia tem no grande público é assustador porque joga exatamente com o moralismo proibicionista que estruturou nos últimos dois séculos nossa forma de perceber o uso de drogas. Ora, façamos aquela boa e velha pergunta clichê. Por que o escândalo não se dá em torno do abuso de álcool?
É preciso primeiro observar que a lógica de aceitação de uma droga é estabelecida por disputas sociais, morais, religiosas e econômicas. Os Estados e leis que outrora proibiram e estigmatizam a maconha, associando a mesma aos “hábitos degenerados” de indígenas e africanos, hoje lucra milhões com a regulamentação do mercado de cannabis, vide os exemplos de Canadá, EUA e muitos países europeus. O ponto aqui é que o “estigma” não é algo natural, é algo construído pelos valores sociais em jogo nas variadas sociedades ao longo da história.
Voltando à cocaína, a droga por excelência da aceleração capitalista, ela é resultado da manipulação das folhas de coca, tão comuns nos rituais e na medicina dos povos andinos. Uma vez trabalhada em laboratório, deu origem ao combustível mais lancinante do capitalismo como religião, a cocaína (e a Coca-Cola, claro). Não à toa mobilizou carteis, Pablos Escobares, artistas da indústria cultural, rock stars e toda sorte de grupos sociais que há tempos “normalizaram” o uso da mesma para acompanhar o “novo tempo do mundo.”
O problema portanto não é se Boulos (ou cada um de nós) usa ou não usa substâncias entorpecentes, mas por que fazemos uso das mesmas. E mais do que isso, por que algumas são aceitas na letra da lei e da moral pública (álcool, tabaco) e outras não. Tudo indica que o “pânico moral” atinge não apenas os “conservadores”, mas todos aqueles que ainda insistem em criminalizar moralmente usuários de todo tipo, sobretudo os das classes mais baixas. Por óbvio que o ideal seria que todos pudéssemos manter nossas virtudes, equilíbrio e moderação e que pudéssemos contar com o apoio de um sistema de governo e de saúde que desse conta dos excessos de toda ordem. Afinal, não se trata de romantizar o uso de coisa alguma, mas de compreender suas circunstâncias históricas, sociais e existenciais.
A tristeza de tudo isso é que, ao que tudo indica, Marçal “venceu” (ao longo da campanha) por pautar a moralidade, mesmo sendo ele um coach de um tipo de mundo, mercado e de negócio que é marcado pela altíssima quantidade de uso do combustível do capital. Irônico, não? O coach capitalista, do insaciável capitalismo, como paladino da moral (e da mentira). Em todo caso, é preciso que caiam os moralistas de todo tipo. Ainda mais numa capital como São Paulo, centro da economia capitalista brasileira, uma cidade marcada por excitantes e depressores, marcada pela alucinação e precarização no mundo do trabalho, marcada pelos resultados, rendimentos, entregas, eficiência. Talvez por isso tenhamos tanto adoecimento, tanta gente na rua, tanta gente endividada, tanta gente sem perspectiva de futuro e sobrevivendo no caos. Como disse uma amiga dia desses: “Essas são as piores drogas, estúpido.”
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E aproveitando a carona da questão, o “Provocação Histórica” da última semana debateu a História das drogas e dos vícios com o historiador Henrique Carneiro.
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