Por Chico Alves
Para satisfazer um sonho da mãe, dona Maria do Socorro, o jovem Xico Sá se inscreveu no concurso do Banco do Brasil na década de 1980. Naquela época, trabalhar no BB era a glória para quem vinha de família pobre ou de classe média. Xico fez o gosto da mãe mas não estudou nada. Foi reprovado no concurso e guardou da experiência apenas o livro “Claro Enigma”, de Carlos Drummond de Andrade, abordado na prova.
Em um trecho do poema “Oficina irritada”, Drummond referiu-se ao “cão mijando no caos”. Xico fixou na cabeça essa imagem e planejou um dia usá-la em livro que escreveria, sabe-se lá quando.
Quatro décadas depois, cumpriu o plano: “Cão mijando no caos” (Galáctico) acaba de ser lançado.
“O título nasceu 40 anos antes do livro”, brinca o jornalista, escritor e colunista do ICL Notícias. Ele estará neste sábado (6) na Feira do Livro, em São Paulo.
“Cão mijando no caos” é um conjunto de crônicas encadeadas para contar a barra pesada dos últimos anos no Brasil sem sucumbir ao baixo astral. Para isso, o autor lança mão do lirismo e recorre ao turbilhão de referências culturais que é a sua marca — tem de Adam Smith a Álvares de Azevedo, passando por padre Cícero.
Contando histórias miúdas, como pede o gênero jornalístico-literário, Xico retrata o metaverso reaça que a partir 2013 tomou conta do país. É quase uma vingança: usa a crônica para contar os tempos em que a crônica praticamente foi varrida do mapa, pela escassez de lirismo na alma dos brasileiros.
“Esse período todo foi difícil para os cronistas, muita gente passou a escrever artigos por conta da urgência dos fatos”, diz o autor, referindo-se à oposição feita à barbárie bolsonarista. “Eu também endureci meu texto, que era mais sambado, digamos assim. Na defesa das causas urgentes, a crônica desceu para o asfalto”.
A dificuldade era óbvia: trabalhando com temas muito duros, muito chatos, como conseguir um texto leve? Mesmo os mais humorados sucumbiram.
Agora, Xico Sá retoma o caminho das pedras miúdas para tratar da grande cloaca ideológica em que mergulhamos. Foi assim que abordou o marco inicial de 2013, por exemplo.
“As manifestações, que têm origem na esquerda e viram para a direita, são contadas no livro por um camelô, que começa vendendo camisa do Che Guevara e do Bakunin e acaba vendendo bandeiras do Brasil para os patriotas”, diz. “Poderia escrever um texto mais sociológico contando isso, mas fui por outro caminho”.
Passados alguns anos, Xico pôde até se permitir ser mais romântico, lírico. Se tratasse desses temas no calor dos acontecimentos, o resultado seria mais raivoso, panfletário, acredita.
Depois do golpe contra Dilma Rousseff, do tenebroso governo Temer e dos anos com Bolsonaro na Presidência, houve uma catarse com a volta de Lula ao poder. O bolsonarismo, no entanto, continua firme e forte, Lira e o Centrão encurralam o Executivo e a gestão do petista está longe do ideal.
Diante disso, como será o amanhã? O que diriam sobre os anos vindouros os cachorros da rua, a que o autor atribui o poder de prever o futuro? Como manter a leveza das crônicas diante de perspectivas que não parecem nada boas?
“Está cada vez mais difícil”, admite Xico. “Mas esses textos podem ser resgatados pelo papel que costumavam ter no meio do noticiário pesado, cumprindo a função de uma janela para o horizonte, um respiro”.
Para confirmar a tese, ele cita o sucesso de audiência que tiveram crônicas clássicas publicadas aqui no portal ICL Notícias.
“Por exemplo, no meio daquela carnificina da guerra vinha o Rubem Braga falando da borboleta amarela que ele perseguia no Rio de Janeiro”, recorda. “Talvez com um pouco de ousadia e paciência a gente descubra que o leitor precisa desse respiro”.
Afinal, se não for para ter esses momentos lúdicos, em que podemos observar o voo de uma borboleta amarela, por qual motivo enfrentamos o bolsonarismo?
“O perigo é a gente se embolar no noticiário, brigar no lado oposto à extrema direita e acabar se engalfinhando da mesma maneira em questões muito pesadas, muito sem vida”, alerta Xico. “Tem que ter esse lado Rubem Braga, Dorival Caymmi, Paulo Mendes Campos para dar sentido à parada”.
O direito a essa leveza, acredita, deveria ser garantido a todos.
“Nesses cronistas a gente encontra embutida uma receita de como ter a vida mais suave”, acredita.
Quem quiser experimentar um pouco de alivio nesses tempos de barra pesada fará muito bem se buscar na livraria mais próxima o “Cão mijando no caos”.
Nada de escapismo. O caos está no livro, tim-tim por tim-tim. Mas, como lembra Drummond, mesmo em um ambiente apocalíptico o destino não consegue impedir momentos prosaicos como aquele em que o cachorro levanta a perna para despejar o seu xixi despreocupadamente.
Um belíssimo livro. Um belo título.
Xico Sá deve essa ao Banco do Brasil.
E nós devemos essa ao Xico.
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