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O que o caso Gritzbach explica sobre o envolvimento do PCC com as polícias de SP?

Especialistas relatam que falta de controle policial, semelhante à que permitiu o surgimento das milícias no RJ, e o tamanho do mercado de drogas intensificou a formação de grupos criminosos em São Paulo
21/02/2025 | 05h00
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Por Paulo Batistella — Ponte Jornalismo

As forças de segurança pública de São Paulo ganharam holofotes desde o último ano ao reconhecerem, entre os seus próprios membros, suspeitos de associação criminosa e ligação com facções. O caso mais simbólico foi o protagonizado pelo empresário Vinicius Gritzbach, delator de policiais e de membros do PCC morto a tiros em plena luz do dia no Aeroporto Internacional de Guarulhos, em novembro de 2024.

Por conta do episódio, foram presos até agora 17 policiais militares, sendo três deles suspeitos de terem executado o empresário, além de cinco policiais civis. O mandante do crime, segundo a Secretaria da Segurança Pública de São Paulo (SSP-SP), seria Emílio Carlos Gongorra Castilho, o “Cigarreira”, um traficante do PCC no Rio de Janeiro e antigo aliado de Anselmo Santa Fausta, o “Cara Preta” — este último morto a tiros em 2021, em São Paulo, em ataque que teria Gritzbach como mandante.

Além do caso Gritzbach, veio à tona, em 2024, uma operação contra guardas civis metropolitanos suspeitos de operar uma milícia na cracolândia em São Paulo, onde extorquiam comerciantes supostamente em troca de segurança.

Ainda no ano passado, uma outra operação, desta vez contra um esquema de lavagem de dinheiro do crime organizado, prendeu um policial civil e um capitão da PM que integrou por 12 anos a Casa Militar, cuja atribuição é a proteção do governador — na gestão Tarcísio de Freitas (Republicanos), ele chegou a chefiar sua segurança. Já em 2025, policiais civis foram presos por suspeita de revenderem drogas apreendidas, no que seria o maior esquema de corrupção da história da Polícia Civil paulista.

O capitão Diogo Costa Cangerana (no fundo, de paletó marrom), que chegou a chefiar segurança do governador, foi preso pela Polícia Federal em novembro de 2024 por esquema com fintechs (Foto: Reprodução)

Falta de controle policial

Para especialistas ouvidos pela Ponte, a aparente infiltração do crime organizado nas forças de segurança tem como principal motivo a falta de controle da atividade policial, o que parte deles diz ter se agravado sob a gestão de Tarcísio e de seu secretário de Segurança Pública, o capitão reformado da Polícia Militar e também deputado federal eleito Guilherme Derrite (PL).

O entendimento comum é que, quando não responsabilizados por excessos em sua conduta profissional e insubmissos ao crivo da sociedade, policiais passam a fazer uso do poder coercitivo de Estado do qual dispõem para benefício próprio — ou seja, de modo criminoso. Deixam, portanto, de compor polícias e, eventualmente, formam até milícias.

“O caso de Guarulhos foi simbólico do que tem sido senso comum sobre combate à criminalidade. Criou-se uma ideia de que o crime organizado está se infiltrando nas polícias, como se ele estivesse formando pessoas para atuar dentro delas. Mas não é o que está acontecendo”, diz o advogado e pesquisador Almir Felitte, autor de “A história da polícia no Brasil: Estado de exceção permanente?”.

“Me parece que, pela grande falta de controle externo, policiais estão se agrupando para cometer crimes e se aliando a várias outras organizações criminosas, incluindo o PCC. Então, é um problema mais complexo”, avalia Almir.

“Dá para citar, por exemplo, grupos de extermínio se formando dentro da polícia já na época da ditadura. É um problema histórico. Mas acho que está entrando em uma nova fase. Nesses mais de 30 anos de democracia, as polícias mantiveram uma estrutura de tempos ditatoriais, agora convivendo com liberdades democráticas. A força policial ganhou autonomia política, passou a ocupar espaços de civis, e isso sem surgir qualquer novo mecanismo de controle sobre sua atividade”, afirma o pesquisador.

Mercado lucrativo

Para o jornalista e pesquisador Bruno Paes Manso, outro fator crítico para ascensão criminosa entre as corporações é o atual tamanho do mercado de drogas. Ele é coautor de “A Guerra: a ascensão do PCC e o mundo do crime no Brasil”, entre outros livros, além de ser um dos fundadores da Ponte.

“O PCC surgiu nos anos 90 e passou a regulamentar esse mercado em São Paulo, criou regras para ter mais previsibilidade, mais lucro e menos custos, reduzindo conflitos”, afirma Bruno. “Ele começa então a ganhar mais dinheiro, principalmente depois que vai para o atacado da droga nas fronteiras da América do Sul e passa a exportá-la. Então, o capital de droga é hoje muito maior para corromper policiais, propor negócios.”

“Também existe uma questão histórica de disputa entre as corporações e, além disso, uma questão política: é um governo ligado ao bolsonarismo, que defende sobretudo a ação violenta da Polícia Militar, como se a guerra ao crime resolvesse algo e a violência criasse um projeto pedagógico de obediência à lei”, critica o jornalista e pesquisador.

“Isso produz muitos efeitos colaterais, então hoje temos policiais descontrolados, que aproveitam do poder que têm nas ruas para vender facilidades, inclusive proteção e morte, como a gente viu no caso do Gritzbach, e mais ou menos como vimos no Rio de Janeiro com o Escritório do Crime”, diz Bruno, que é também autor de “A república das milícias: Dos esquadrões da morte à era Bolsonaro”.

O MP-SP apurou que comerciantes da região da cracolândia pagavam R$ 50 mil por mês para policiais retirarem dependentes químicos de frente de suas lojas (Foto: Daniel Arroyo/ Ponte Jornalismo)

Tolerância aos ‘bicos’ de segurança

Já para o coronel reformado da PM paulista José Vicente da Silva Filho, que foi secretário nacional de Segurança Pública no governo de Fernando Henrique Cardoso (PSDB), a venda de facilidades ao crime começou com um problema mais discreto: a tolerância com “bicos” de segurança por parte de policiais — que se tornou um negócio cada vez mais rentável para oficiais e integrantes de unidades de elite.

“Temos registros públicos disso. No YouTube, está lá um ex-comandante da Rota que confessa até rindo que fazia a segurança do Gugu quando estava na ativa, o coronel Telhada”, lembra José Vicente. “Então, o problema vai se alastrando, o mau exemplo vai pipocando. Se o capitão, o tenente está fazendo, por que eu, soldado, não posso? E quem vende segurança para uma padaria, uma farmácia ou um condomínio acaba, em certo momento, vendendo facilidades para o crime.”

“Um amigo que era diretor de segurança de uma rede de supermercados disse que toda a diretoria tinha segurança de policiais com ao menos dois anos de Rota. Então, com a grife da Rota, por exemplo, fica mais fácil vender segurança, o que as próprias investigações já estão mostrando”, afirma ainda o coronel reformado, fazendo referência à suspeita da PM de que policiais da Rota, tropa de elite da corporação, vazavam informações ao PCC — vale dizer que um dos investigados é amigo de Derrite.

São Paulo tem milícia?

Os três especialistas ouvidos pela Ponte afirmam ver ainda algum paralelo na situação de São Paulo com a do Rio de Janeiro, onde a ocorrência de milícias tomou maiores proporções diante da fragilidade de controle. No entanto, apenas Almir Felitte é assertivo em dizer que, sob Tarcísio, tem se intensificado um processo de milicianização no estado.

“Existe um imaginário do miliciano carioca, mas a milícia não é só aquele policial do Rio de Janeiro, talvez aposentado, com uma camisa preta com uma caveira branca estampada, que cobra o ‘gato Net’ ou outro serviço em uma comunidade”, argumenta o pesquisador. “É isso também, mas vejo milícia dentro de um conceito mais amplo: a milicianização vem da falta de controle civil da atividade policial.”

“O Estado dá aos policiais um forte poder coercitivo sobre a sociedade, que é tipicamente público, mas, pela falta de controle, eles passam a formar grupos que se utilizam de forma privada desse poder. Isso se manifesta de diferentes formas.

No meio rural, por exemplo, há policiais que atuam para grandes proprietários de terra — como foi no Massacre de Eldorado dos Carajás, nos anos 90. No Rio, existem os milicianos que dominam fisicamente e exploram certos territórios. Em São Paulo, os guardas que vendem segurança no Centro, policiais se organizando para ter uma bancada política. Todas essas manifestações, muito diferentes entre si, têm uma mesma raiz: a autonomia policial”, sustenta Almir.

Já Bruno Paes Manso diz entender que as milícias são autônomas em suas atividades, o que as difere da situação de São Paulo, onde os grupos de policiais criminosos têm atuado como prestadores de serviço. “Acho difícil chamar de milícia, porque a grande força do crime é uma facção. Esses policiais não são autônomos, eles fazem negócios com uma facção. Eles dependem ainda do crime para ganhar dinheiro, porque o extorquem, dependem que o crime seja forte para faturar. Eles não criaram seu negócio próprio como no Rio de Janeiro — em que controlam o território”, defende o pesquisador.

O coronel reformado José Vicente, por sua vez, vincula milícia a controle de território: “Ali, naquele caso em que extorquiam comerciantes para supostamente vender segurança, era um ensaio de milícia. Ela vai avançando pelo controle de territórios. As milícias no Rio não têm um controle central. Elas vão sendo copiadas, porque é um negócio exitoso, dá dinheiro. Como não há uma imposição de limites pela própria instituição, torna-se uma praga. E, depois, para retomar isso é cada vez mais difícil.”

Ele afirma também que o controle da ascensão criminosa nas corporações deve partir de Tarcísio: “Ninguém tem mais autoridade que o governador. O papel dele é declarar intolerância absoluta com qualquer ‘bico’ que envolva segurança, principalmente envolvendo oficiais e delegados.”

Fragilização da Polícia Civil

Almir coloca em dúvida, no entanto, a autoridade que o governo tem sobre as polícias. “É fácil o Tarcísio dizer que tem controle sobre as polícias quando ele concorda com elas. A gente só descobre se um governador não tem esse controle quando ele discorda do comando policial. Se em algum momento houver esse atrito — e acho que isso não vai acontecer, porque a principal base política do Tarcísio para as próximas eleições é a Polícia Militar de São Paulo —, vamos ter noção do tamanho do problema”, diz.

Para Bruno, pesa um histórico de institucionalidade construído em governos anteriores, apesar do recuo sob Tarcísio. Ele pondera, de todo modo, ser preocupante a perda de prestígio da Polícia Civil, que deveria ser a protagonista nas investigações contra essa ascensão criminosa.

“Houve desde o Mário Covas, e depois com o Alckmin e os demais, um certo padrão. Foi nesse período que a Polícia Militar foi criando seus mecanismos de controle. E houve um problema de fragilização da Polícia Civil, e isso é sério, por conta de uma aposta muito maior no patrulhamento ostensivo, como se ele fosse a solução para a segurança pública”, afirma ele.

“A investigação da Polícia Civil deveria ser o ponto nevrálgico para se lidar com as facções. Esse papel fica hoje muito com o Ministério Público”, critica o jornalista e pesquisador. “Mas são só dois anos de bolsonarismo, de tentativa de descontruir as instituições. Então, é bem diferente do Rio, onde a falta de controle é bem complicada. Em São Paulo, há alguma institucionalidade”, afirma Bruno.

“Agora, cada vez mais o crime está entrando na sociedade, não só com a capacidade de pagar por eleições e políticos, como entrando na economia formal. O desafio é grande, porque o crime está cada vez mais sofisticado, e a polícia, muito atrás, apostando em patrulhamento ostensivo, enquanto o dinheiro já entra no próprio sistema financeiro. Se não tiver investimento e compreensão, vai ser difícil acompanhar.”

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