Por Ayam Fonseca*
Atacados em várias frentes, os condutores da política econômica do governo agora são provocados pelos porta-vozes do “mercado” a cortar gastos em duas áreas essenciais: Saúde e Educação.
O que se lê nos noticiários é que o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, estaria preparando para apresentar ao presidente Lula a proposta de atrelar o crescimento dessas despesas importantes ao arcabouço fiscal. Com isso, o aumento anual dos recursos de Saúde e Educação não poderia passar de 2,5%.
Ex-ministro da Saúde no segundo governo Lula, de 2007 a 2010, José Gomes Temporão é frontalmente contra a ideia. Ele estima que essa limitação iria retirar R$ 24 bilhões do SUS.
“O SUS é ao mesmo tempo uma grande conquista civilizatória da sociedade brasileira, mas é também um grande mar de problemas”, admite Temporão, em entrevista ao ICL Notícias. “Temos que melhorar a gestão? Sem dúvida! Temos que melhorar a qualidade e eficiência do gasto? Sem dúvida! Mas temos que aumentar o gasto, isso é central”.
Além de explicar as consequências nefastas que essa mudança poderia trazer aos brasileiros que precisam do sistema, o ex-ministro identifica os interessados em pressionar o governo nessa direção.
“É a grande mídia e economistas ligados ao neoliberalismo e ao sistema econômico vigente que lançam essas ideias. Como se fossem ideias interessantes para enfrentar a questão dos dilemas macroeconômicos”, diz ele.
Temporão reconhece que uma medida desse tipo iria contra a expectativa positiva criada com a eleição de Lula, mas ainda acredita que os representantes do governo vão cumprir a promessa que lhe fizeram, de valorizar a Saúde.
ICL Notícias — O que o sr. acha da ideia que tem sido cogitada no próprio governo de reduzir o repasse obrigatório para a Saúde?
José Gomes Temporão — A luta pela construção de um sistema universal de saúde no Brasil está explícita na Constituição, no artigo 196, mas contraditoriamente, passados mais de 30 anos da aprovação da nova Constituição, esse sistema ainda não está completamente implementado e não cumpre os seus objetivos constitucionais, que é oferecer atenção e cuidado de maneira igual e uniforme para todos os brasileiros, independente de raça, status social ou renda.
O SUS (Sistema Único de Saúde) tem uma história que, se você analisar todas as dimensões que envolvem a construção do sistema de saúde brasileiro, o financiamento com certeza está entre os três ou quatro aspectos mais centrais.
Apesar disso, o SUS sofre com a restrição orçamentária desde o seu nascimento. Se formos olhar lá pra trás, a ideia, quando houve a unificação entre o INAMPS (Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social) com o Ministério da Saúde, era que o orçamento do então instituto, vinculado à Previdência Social, acompanhasse o INAMPS no novo Ministério da Saúde, mas isso não aconteceu. Já no início houve esse corte, e ao longo dos anos 90 e anos 2000, com todos os governos, de todos os tipos ideológicos, inclusive os mais progressistas, essa questão nunca foi plenamente alcançada.
O resultado é que temos hoje um sistema que se diz universal, mas onde apenas 40% do gasto total vem de recursos públicos, ou seja 60% do que se gasta em saúde no Brasil são gastos das empresas e principalmente das famílias, através do desembolso direto. As pessoas compram remédios, pagam direto, pagam por procedimentos e exames porque muitas vezes não conseguem no SUS, e por aí vai. Essa é a grande contradição, e é uma luta do sanitaristas brasileiros a sua superação. A emenda constitucional de 95 foi o momento mais crítico. Vários estudos mostram que foram retirados em termos reais e valores da época, mais de R$ 25 bilhões do orçamento do Ministério.
Com a chegada do novo governo Lula, e a retomada e uma perspectiva de fortalecimento do SUS, depois de anos de trevas que nós tivemos com Bolsonaro, se criou a expectativa de que iriamos entrar numa fase onde haveria um crescimento real do gasto de saúde. Aliás, o próprio presidente, em inúmeros discursos, disse que saúde não é gasto, mas sim investimento. Eu acredito que ao longo dos seus dois governos anteriores, o Lula percebeu que a questão da saúde é central. Então é claro que essa proposta vem do “mercado”. Eu, juntamente com a coligação de entidades da área da saúde pública, “Frente pela Vida”, estive em um audiência com o Ministério da Fazenda onde foi reiterado verbalmente que não há por parte do governo nenhuma proposta de mexer nos pisos constitucionais da saúde e da educação.
Na verdade, é a grande mídia e economistas ligados ao neoliberalismo e ao sistema econômico vigente, que lançam essas ideias. Como se fossem ideias interessantes para enfrentar a questão dos dilemas macroeconômicos.
Em um artigo o senhor cita que a limitação do crescimento anual de recursos a 2,5% poderia gerar uma perda de R$ 24 bilhões ao SUS. O que isso pode significar na prática? Quais efeitos práticos a gente vai ver caso isso se concretize?
Essa é uma outra contradição. Veja, a sociedade brasileira está envelhecendo rapidamente, nós estamos fazendo uma transição demográfica na metade do tempo que a França fez no século passado. Isso significa gente mais idosa, significa mais doença crônica, significa mais necessidade de cuidados especializados, significa maior incidência e prevalência de câncer, de doença cardiovascular, de doença cérebro-vascular, demência, distúrbios psíquicos, sofrimento psíquico, diabetes e hipertensão. Tudo isso vai na contramão de uma racionalidade que é: quanto mais envelhece uma população, maiores serão as demandas por gasto em assistência e atenção.
Para mim, a questão central que está explicitada nessa discussão é que estamos numa luta feroz pela apropriação dos fundos públicos. O mercado financeiro corre desesperadamente atrás de subsídios e tentam retirar recursos que deveriam ir para a Educação, para a Saúde e para a Segurança. Quando o governo Lula começa a falar que saúde é investimento, não é gasto, o pessoal do mercado fica nervoso.
Outra contradição é que ao mesmo tempo que nós temos o sistema universal subfinanciado, nós temos uma estrutura fiscal que dá subsídios ao mercado, para que as pessoas e empresas tenham planos de saúde.
Temos 85% dos planos de saúde no Brasil ligados ao vínculo empregatício. Apenas 15% dos planos são pagos diretamente pelas famílias. Se nós temos um sistema universal, por que não imaginar um cenário completamente distinto, onde 80% da população utilize apenas e exclusivamente o sistema público? O que que falta para isso? Uma das questões centrais é sustentabilidade econômica, e sustentabilidade econômica só se resolve quando a gente mudar essa equação, quando nós sairmos de 40% do gasto total como gasto público, para no mínimo 65%.
Isso significa que nós vamos ter que aumentar o gasto em saúde, e não reduzir, que é o que essa proposta sugere.
Qual é a ideia que o governo passa quando diz estudar essa possibilidade de fazer cortes na Saúde e Educação?
Como eu falei, nós da “Frente pela Vida” tivemos uma audiência com o Ministério da Fazendo e nos foi negado, pelos dois secretários que representavam o ministro Haddad, que o governo cogite seguir essa proposta. Inclusive, o presidente Lula fez recentemente um discurso contundente dizendo que não vai cortar serviços que atendem os mais pobres.
Eu acredito que essa proposta é do mercado, do setor financeiro, do Banco Central, dos grandes conglomerados que não querem que a política econômica mude, não do governo em si. Nós, do campo da saúde pública, estamos nos mobilizando e vamos defender com tenacidade, vigor e entusiasmo o que está na Constituição brasileira: a plena implementação de um sistema universal. Portanto, o que o governo Lula tem que fazer é ampliar o gasto de Saúde, e não reduzir.
O sr. consegue enxergar alguma saída para o governo se desvencilhar do controle do “mercado” nessa área?
Durante a pandemia, de uma hora para outra, ficou bastante claro para a classe média, para a grande imprensa e formadores de opinião, como o SUS é importante e relevante.
Nesse momento de ameaça à sociedade, quando a vida de todos estava sob risco e as pessoas não sabiam que, caso necessitasse de uma internação, de ir para uma UTI e precisar de um respirador, poderiam ser atendidas tanto no setor público, quanto no privado.
Isso ainda não se explicitou numa vontade política majoritária da sociedade, em termos de uma mobilização por uma defesa mais radical do SUS. Com isso eu me refiro a defender que o Brasil reduza drasticamente a presença do setor privado de plano de seguros.
Qual o sentido de eu gastar dinheiro comprando este seguro se eu tenho o setor público funcionando e operando com qualidade? Nenhum sentido!
Um dos motivos dos brasileiros de classe média que migram para Portugal, é porque deixam de ter gastos expressivos com Saúde e Educação. É isso que nós queremos aqui no Brasil, foi por isso que nós fizemos o movimento da reforma sanitária nos anos 70 e 80, e foi por isso que nós temos uma grande conquista que está na Constituição.
Há alguma forma de fazer cortes na Saúde sem que crie espaço para miséria, sofrimento e doenças?
É impossível. A gente vive numa situação de penúria. Basta olhar a situação dos hospitais federais aqui no Rio de Janeiro, com milhares de leitos fechados. Morrem centenas de crianças que nascem com malformações congênitas no Brasil porque não têm acesso a uma cirurgia cardiovascular sofisticada.
Faltam serviços especializados para ampliar o número de transplante de órgãos, faltam policlínicas, faltam hospitais especializados.
O SUS é ao mesmo tempo uma grande conquista civilizatória da sociedade brasileira, mas é um grande mar de problemas. Temos que melhorar a gestão? Sem dúvida! Temos que melhorar a qualidade e eficiência do gasto? Sem dúvida! Mas temos que aumentar o gasto, isso é central.
O que representa essa virada de chave no que diz respeito ao investimento na Saúde, quando comparado ao discurso da campanha eleitoral?
Normalmente um cidadão comum olha a saúde como acesso a serviços, médicos, enfermeiros, vacina, transplante, cirurgia, mas a saúde tem uma dualidade muito singular. Ao mesmo tempo que a saúde é uma política fundamental para a melhoria das condições de vida de uma sociedade, ela tem uma dinâmica econômica própria.
A saúde no Brasil, hoje representa 10% do PIB. Quando eu falo saúde eu digo: Indústrias, serviços, tecnologias, funcionários, tudo que gira em torno da saúde, em todos os níveis, do mais simples ao mais sofisticado. São 12 milhões de empregos diretos e indiretos. A saúde, junto com a com o setor da guerra, é o setor que está na vanguarda das novas tecnologias.
É uma área estratégica para qualquer sociedade que se queira estruturar como uma sociedade desenvolvida e forte. Então essa dimensão econômica singular da saúde, tem que ser vista e tem que ser trabalhada como uma política.
Agora no governo do Lula foi lançada a política que envolve mais de onze ministérios para o fortalecimento do complexo econômico e industrial da Saúde. Justamente para reduzir a dependência tecnológica brasileira.
Para que o Brasil não precise mais importar tudo da China, Índia, Europa e Estados Unidos. A nossa dependência de matéria-prima para fazer medicamentos é de mais de 85% dos princípios ativos, por exemplo. Nós temos que produzir aqui, porque nós temos escala, temos população, temos um sistema universal, temos universidade, temos uma base industrial e temos uma das melhores agências reguladoras do mundo que é a Anvisa.
É essa dualidade que a saúde nos apresenta! Ela é cuidado, ela é atenção, mas ela é dimensão econômica que faz parte do processo de desenvolvimento do país e da economia.
Como você vê esse movimento dos cortes quando posto ao lado do discurso pregado no momento da vitória, sempre falando em proteger os mais pobres?
Isso é uma contradição total. Em agosto de 2022, nós do “Frente pela Vida” fizemos uma conferência nacional de Saúde, em São Paulo, e o nosso convidado especial foi o Lula. Nós entregamos um documento a ele, que tinha especificações do que nós considerávamos. Ele recebeu o documento e se comprometeu a implementá-lo.
Depois, quando fui o relator do grupo em transição da saúde, o nosso documento foi entregue à ministra Nísia Trindade, e estão lá reiterados todas as propostas, inclusive a revogação da emenda 95 e recomposição dos gastos de saúde. Então qual o sentido do governo Lula, entrando no seu segundo ano de mandato, defender uma redução do gasto real de saúde? Isso é um contrassenso, isso não faz o menor sentido! Não acontecerá, se você quer saber minha opinião.
Qual é a grande diferença da política de Saúde atual para o período em que o sr. era ministro?
Quando eu era Ministro o contexto político era muito melhor. Nós tínhamos um Congresso de muito mais qualidade e muito mais equilibrado. As forças progressistas estavam lá representadas em maior peso. De lá pra cá, houve um retrocesso brutal no perfil do Congresso Nacional, ele acabou se apropriando de grande parte do orçamento das emendas impositivas, inclusive o próprio orçamento do Ministério da Saúde. Desse ponto de vista a situação piorou.
Por outro lado, eu vejo no Lula uma visão do campo da saúde mais avançada do que naquela época. Ele agora percebeu com clareza essa dualidade que eu falei: saúde é fundamental para o cuidado, mas saúde também é fundamental para a economia. Por isso saúde não é gasto, é investimento.
*Estagiário sob coordenação de Chico Alves
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