No dia 31 dezembro de 1958, Carolina Maria de Jesus passou a tarde escrevendo. Ela, no auge de sua fome por comida e por vida, implorou por um milagre que tirassem de cima de sua cabeça o manto da invisibilidade. Algumas coisas ela pôs no papel e outras apenas pensou, desejou e me chamou com toda a vontade e paixão. Cheguei atraído por aquela voz saída de uma mente obstinada e cheia de certeza de ser quem era: uma pessoa muito talentosa e capaz. Isto hoje sabemos, neste 2024 em que ela completará 110 anos.
Encontrei-a tentando se concentrar para escrever sobre mais um dia na favela do Canindé, mas perturbada com um jogo de bola na vizinhança. Não pelos garotos, mas pela reação da mulher do vizinho Vitor que, irritada, furou a bola, pegou uma arma e saiu correndo atrás dos meninos. Carolina estava horrorizada com a vizinha empunhando um revólver para ameaçar crianças. “E se o revólver disparasse?!”, exclamou.
Já eu fiquei preocupado com um tal cigano que fazia os olhos de Carolina brilharem, pois via que ela podia estar no início de uma paixão. Onde aquilo poderia levá-la?! Se o caso prosseguisse, talvez eu não fosse possível cumprir a missão para a qual ela me invocara no último dia do ano…, mas, quem era eu para desejar que ela não se apaixonasse? Me veio a lembrança o pungente discurso da estadunidense Sojourney Truth, também negra e vítima de tantas exclusões: Afinal, não seria Carolina Maria de Jesus uma mulher?! Fiquei com sentimentos mistos, pois ela merecia o amor talvez mais do que qualquer pessoa naquela cidade… quem sabe no mundo inteiro!
Deixei-a escrevendo, escrevendo e escrevendo. Na casa do vizinho Vitor teve um baile, descreveu ela, mas no dia seguinte, nenhum príncipe apareceu. Às 4 da manhã, tudo escuro e Carolina saiu da cama para buscar água. A cidade ainda dormia os efeitos de uma ressaca ou talvez ainda nem tivesse ido dormir as comemorações do réveillon
Ao longo de todo o ano de 1959, a tristeza parecia ter sido a sua grande companheira. Esta palavra apareceu talvez mais que a palavra “fome”, sinalizando uma gula por algo que alimentasse bem mais que o estômago. E por falar em barriga vazia, os filhos não comeram no primeiro dia do ano e ela estava, adivinhem? Triste. Carolina usou tantas lindas metáforas para traduzir este sentimento… Deixou de cantar pelo sufocamento da “tristeza que envelhece o coração”, como escreveu no dia 4 de janeiro. Doze dias depois, em 16 de janeiro, ela sentiu “triste como se tivessem mutilado um de seus membros” e precisou tomar providências para “para dissipar a tristeza que estava arroxeando a alma”.
A mutilação veio depois que a norte americana The Reader Digest devolveu os originais que ela com tanto sacrifício enviara, na esperança de ser finalmente publicada. Sentiu esta rejeição como uma punhalada e anotou que “a pior bofetada para quem escreve é a devolução de sua obra”. E aí se refugiou com o tal cigano.
Ela estava realmente desesperançada e quis queimar os cadernos. Imagine! Deixar o fogo consumir anos de registros tão preciosos, que ela julgava sem valor por causa da recusa de uma editora que não sabia quem ela foi, quem ela era e quem poderia ser. Pessoas que não enxergam poder nos despossuídos.
Eu gritava, “Não faça isso, Carolina! Estou aqui!”, mas ela não podia me escutar, pois eu era muito distante do seu cotidiano de faltas profundas de absolutamente tudo… principalmente de abraço, de carinho, de acolhida e de amor.
No entanto, algo não a deixava voar nas asas da insanidade. Uma lucidez tão absoluta que por vezes parecia punição por conseguir ver o que quase ninguém via. E foi este olhar que a fez reparar nos silêncios mais do que nas falas e foi olhando o olhar dele, o cigano, para a menina de apenas 14 anos, que o ódio veio fazer companhia à tristeza, pois não seria ela um ser humano? Uma combinação que transbordou em versos duros: “Não pensas que vais conseguir o meu afeto novamente/ o meu ódio vai evoluir, criar raízes e dar sementes”.
Assim fui navegando com ela no mar daquele ano. Eu ali, tão perto, e ela sem me ver até que pela metade do ano, em junho, ela saiu na revista O Cruzeiro e começou a sentir minha a presença. Aos poucos ela ia me enxergando, pois sou aquele que alguns chamam de Sucesso, Fama, Reconhecimento.
Eu era um novo amigo que teria que lutar contra os ciúmes da Fome e da Tristeza, companhias persistentes na vida de Carolina. Elas teimavam em ficar. Um dia com comida outros sem; alguns dias doente, outros senão ela, os filhos; um dia com luzes e outros na completa escuridão. Solano Trindade tinha escrito há alguns anos antes, em 1944, “…tem gente com fome, tantas caras tristes querendo chegar, em algum destino, em algum lugar”. Em agosto, Carolina anotou em seu diário: “A pior coisa do mundo é a fome”. Escreveu e… sumiu.
Ela só retornou no dia 31 de dezembro. Menos falante, menos detalhista, menos, bem menos. Ela falou de um dia muito simples e de compras igualmente simples para o dia seguinte que seria “dia de ano”. Arroz, sabão, querosene, açúcar. Carolina escreveu enquanto os filhos dormiam e pediu a Deus para abençoar o Brasil. Ela ainda tinha forças para amar um país que a desprezava e relegava ao lixo. Que linda, a Carolina…
Embalei o seu sono enchendo-a de esperança, pois ela não sabia que neste ano que nascia eu, o Sucesso, chegaria com malas e bagagens materializando seu grande sonho, um livro publicado. “Quarto de Despejo” se transformaria no maior best seller da história da literatura brasileira. O futuro a colocaria nos estudos de acadêmicos e acadêmicas do país inteiro e do exterior. Ela seria pura inspiração. Gerações e gerações falariam dela e de sua obra tão vasta, mesmo aquela que ela escrevia freneticamente enquanto driblava as goteiras e as inseparáveis irmãs fome e tristeza, como destacaria Conceição Evaristo, uma das maiores autoras inspiradas por ela.
Nas primeiras horas deste ano que seria glorioso, ela anotou: “1º de janeiro de 1960: Levantei às 5 horas e fui carregar água”.
No primeiro dia do novo ano, quem aprendeu uma lição fui eu. Aprendi que para pessoas como ela, é preciso paciência sobre-humana para aguardar a minha chegada. Não devia ser assim, mas não há, literalmente, almoço grátis. A Paciência é a amizade mais difícil de cultivar porque quem tem fome… tem pressa. Ainda bem que Carolina conseguiu me esperar.
Hoje olho para o lado e sempre enxergo uma Carolina. Para estas, sempre acenarei com “Feliz ano novo, Carolina! Não desista. Me espere!”.
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