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Andrea Dip

Jornalista investigativa e estudante de psicanálise. Autora do livro-reportagem “Em nome de quem? A bancada evangélica e seu projeto de poder". É pesquisadora na Freie Universität de Berlim e apresenta o podcast Pauta Pública na Agência Pública de Jornalismo Investigativo.

Filme revela soldados israelenses criando conteúdo para TikTok a partir de crimes em Gaza

Em entrevista exclusiva à coluna, o diretor Richard Sanders fala sobre seu novo filme para Al Jazeera
16/10/2024 | 07h48

Jovens israelenses cantam a plenos pulmões que vão queimar vilas até o chão. Soldados dançam e vestem lingerie de mulheres palestinas assassinadas ou despejadas. Explosões de prédios em Gaza são mostradas em vídeos com música techno e gritos de empolgação de soldados. Torturas, humilhações de reféns. Adolescentes “fantasiados” de palestinos ou bebendo água e acendendo luzes pela casa para zombar das pessoas que estão sem acesso a energia elétrica ou água na Faixa de Gaza.

Esses são alguns dos conteúdos que estão sendo diariamente produzidos por soldados e jovens israelenses e compartilhados nas redes sociais, principalmente o TikTok, mostrados pelo recém lançado “Gaza”, documentário dirigido pelo premiado e experiente produtor inglês Richard Sanders a partir de investigações do canal de jornalismo independente Al Jazeera.

O filme, lançado um ano após o ataque do Hamas a Israel e o início da invasão da Faixa de Gaza, explora uma coleção de mais de 2.500 contas de mídias sociais de soldados israelenses e também traz entrevistas com jornalistas locais, escritores e especialistas que seguem apontando cada um dos crimes de guerra que estão sendo cometidos ali. Também fala de como a Inteligência Artificial está sendo usada para definir alvos e mostra hospitais sendo derrubados arbitrariamente.

Em entrevista exclusiva à coluna, Sanders fala sobre essas descobertas e faz uma crítica à mídia ocidental que, segundo ele, cria uma falsa dualidade entre “uma potência ocupante todo-poderosa apoiada pela única superpotência do mundo e um povo prostrado, indefeso e com seu território ocupado ilegalmente”.

O filme “Investigating war crimes in Gaza” pode ser visto com legendas em português aqui.

Documentarista Richard Sanders

Primeiramente eu gostaria de saber mais sobre o processo de documentação: o que significou para você, como documentarista e produtor experiente, dirigir esse filme?

Acho que, antes de mais nada, me marcou a maneira como abordamos o assunto. De certa forma, ao trabalhar para a Al Jazeera somos liberados da abordagem da imprensa ocidental, que, claramente, comete violações grotescas e em larga escala dos direitos humanos e continua a relatar a história [em Gaza] como se ela fosse terrivelmente complicada.

Mesmo quando há provas contundentes, por exemplo, quando os israelenses bombardearam uma escola da ONU para crianças refugiadas, a BBC noticiou que os israelenses diziam que ali havia um centro de comando do Hamas. E sempre ignorando o fato de que os israelenses não apresentam nenhuma prova para sustentar isso, que não há nenhuma prova de que em algum momento o Hamas tenha usado um centro de comando da ONU.

Portanto, o público fica com essa percepção estranha de que a coisa tem nuances e é complicada e [no filme] a interpretação desses eventos é contestada. Há evidências esmagadoras e maciças de que crimes muito, muito, muito graves contra os direitos humanos estão sendo cometidos. É assim que relatamos o fato. Não noticiamos que palestinos morrem em uma explosão e depois damos igual destaque à negação israelense de que eles tenham algo a ver com isso. Esse é um tipo de enquadramento bastante diferente do nosso ocidental, o que é libertador porque facilita a narrativa adequada.

Quando se assiste a reportagens da mídia ocidental sobre Israel, é sempre muito estranho, as coisas não fazem muito sentido porque precisam ser enquadradas nesse falso dualismo. E, é claro, mais fundamentalmente por trás disso, não acreditamos que haja uma equivalência entre uma potência ocupante todo-poderosa apoiada pela única superpotência do mundo e um povo prostrado, indefeso e com seu território ocupado ilegalmente.

Não existe uma equivalência moral, política ou militar entre os dois. Então nesse filme nós estávamos muito conscientes desde o início da inadequação das reportagens ocidentais.

Também estávamos cientes desse fenômeno extraordinário de soldados israelenses publicando seus próprios vídeos, fotos, postagens e tudo o mais nas mídias sociais em massa. Um número enorme dessas publicações que mostravam os militares israelenses, na melhor das hipóteses como mesquinhos, indisciplinados, desdenhosos da população civil e, ao que parece, cometendo crimes contra os direitos humanos.

E percebemos que havia aqui um recurso absolutamente inestimável para contar a história da guerra, especialmente porque o Alto Comando e o governo israelense parecem não ter nenhuma preocupação em detê-los. Isso talvez tenha sido o mais notável. As pessoas me dizem que muitas vezes os soldados em campo se comportam mal, mas a diferença aqui é que eles estão capturando tudo em seus próprios telefones e são eles que estão colocando isso nas mídias sociais. Certamente esse é um elemento particular, o fato de eles estarem apresentando tudo isso para nós vermos.

Acho que o poder do filme é que esses vídeos e fotos dos soldados israelenses são justapostos à experiência palestina no local. Tivemos equipes locais, que eu gostaria de homenagear. Quando as contratamos, eu disse: “ Tragam o que vocês conseguirem, eu sei que isso é incrivelmente difícil”. E eu esperava que eles voltassem com algum material no telefone, mas eles trouxeram tudo lindamente filmado, entrevistas realizadas com muito profissionalismo, imagens de Gaza realmente extraordinárias. No momento, estamos preparando uma página totalmente separada em nosso site, chamada Testimonies (Testemunhos), para que possamos homenagear e realmente fazer justiça a essas entrevistas.

O que mais te chocou ou impressionou na realização desse filme?

Nada. É exatamente assim que eu esperava que os israelenses se comportassem após o dia 7 de outubro de 2023. Acho que este dia deu licença para todos os tipos de comportamento que eles poderiam ter se sentido, de certa forma, impedidos de adotar antes. O que me choca é a cumplicidade da mídia ocidental e a cumplicidade da classe política ocidental. E acho que não estou sozinho nisso.

Acho que muitas pessoas no Ocidente estão sentindo uma profunda desconexão com quem controla a mídia e seus líderes políticos que acham terrível que crianças palestinas estejam morrendo mas não fazem nada a respeito. Na verdade, eles continuam a armar os israelenses. Não é apenas o fato de estarmos sentados aqui permitindo que isso aconteça, no que diz respeito aos europeus, à nossa porta. Na verdade, estamos facilitando isso. Os americanos ainda os estão armando. Sei que os alemães reduziram o envio de armas, mas historicamente os alemães os armam. Nós britânicos estamos claramente fornecendo a base que temos em Chipre como um centro muito importante de suprimentos para Israel.

E acho que as pessoas no Ocidente assistem a essa matança em massa de criancinhas e ficam perplexas com o fato de que estamos participando disso. Temos simultaneamente a guerra em andamento na Ucrânia, e a duplicidade de padrões é tão grosseira e óbvia que é de tirar o fôlego.

Desnutrição é uma das principais causas de mortes de crianças em Gaza

Alguém diz no documentário que “Vivemos em uma era de tecnologia, e esse é descrito como o primeiro genocídio transmitido ao vivo da história”. E o filme mostra como, com base em imagens frequentemente produzidas pelos próprios soldados israelenses, há evidências de diferentes tipos de crimes de guerra. Por que Israel não está sendo responsabilizado? Que tipo de poder é esse?

Essa é uma pergunta profunda e complicada que não estou necessariamente preparado para responder. O poder extraordinário, o domínio extraordinário que esse pequeno etnoestado tem sobre o establishment político e midiático do Ocidente, acho que, de certa forma, essa é a grande pergunta que precisa ser feita agora. Você citou o início do filme em que Susan Abel-Hauer, a romancista palestina fala sobre isso e esse é realmente o ponto central do filme. Ninguém pode dizer que não sabia. Não se pode alegar ignorância.

Qual é o papel dos Estados Unidos e da União Europeia nesse conflito?

Bem, os Estados Unidos são o grande vilão. Quero dizer, eles conduzem as coisas. A situação é um pouco diferente na Europa continental. Na Grã-Bretanha, para ser franco, não temos uma política externa. Se analisarmos a questão em seus aspectos essenciais, basicamente esperamos que Washington nos diga o que fazer.

E digo isso depois de ter feito muitos filmes sobre a guerra do Afeganistão e a guerra do Iraque. Entrevistei Tony Blair, entrevistei George W. Bush e assim por diante. A relação britânica com os Estados Unidos é embaraçosamente imperial. Mas é claro que você sabe que na Alemanha há um nível totalmente diferente. Na Alemanha, é extraordinária a deferência do governo para com Israel. Bastante assustador. Mas sim, os Estados Unidos são o grande vilão da paz. E Biden tem sido terrível. Acho que, assim como na Grã-Bretanha, após a eleição, eles perceberam que precisavam mudar um pouco a retórica, precisavam aumentar um pouco o tom de voz. Mas eu diria que, para aqueles que acham que a situação não pode piorar, ela pode. Trump seria significativamente pior do que Biden.

Outra coisa impressionante é o uso da inteligência artificial para criar e perseguir alvos em Gaza. O documentário fala sobre um programa chamado “Where is Daddy?” (Onde está o papai)? Você pode explicar o que é isso?

É, o Lavender, que na verdade não mencionamos pelo nome, e depois o “Where ‘s Daddy”, sim. Esta é na verdade uma reportagem da revista 972 que mostramos no filme. A revista 972, uma revista israelense de esquerda, muito boa, e com fontes muito melhores dentro do exército israelense do que eu jamais poderia esperar ter, eles falaram com um grande número de pessoas. Basicamente, nos primeiros meses da guerra, os israelenses queriam matar pessoas mais rapidamente do que seus procedimentos de seleção de alvos permitiriam, por isso trouxeram a inteligência artificial.

Essa é a alegação da 972, com base em testemunhos anônimos de vários oficiais militares israelenses. Os israelenses negam isso, só para deixar claro. E, basicamente, eles extraíam tudo o que sabiam sobre você através das suas mídias sociais, de todas as fontes que podiam encontrar e, acima de tudo, do seu telefone. Onde está seu telefone? De onde seu telefone está próximo? Para quem você está fazendo ligações, com quem está falando e assim por diante. E com base nessa análise, eles lhe dariam uma pontuação até 100.

Se sua pontuação estiver acima de um determinado nível bastante arbitrário, eles podem matá-lo. Agora você tem esse software secundário absolutamente arrepiante chamado “Where’s Daddy?” Porque eles precisam descobrir onde matar você. E, aparentemente, é muito mais fácil matar pessoas em casa do que na rua. Não sei quem inventou o nome é muito revelador. Significa que as pessoas são frequentemente mortas com toda a sua família. É horrível.

E ainda sobre o assunto do uso de IA na guerra ou mesmo de pagers explosivos, parece haver um aumento nessa despersonalização, no sentido de que se antes em uma guerra era uma pessoa que matava com uma espada, depois puxava o gatilho de uma arma ou o pino de uma granada, ela poderia ser responsabilizada pela morte que causou. No caso da IA, como isso funciona? Quem é implicado? E também pensando na maneira como Israel sempre tratou os palestinos não como pessoas, mas como uma massa ou até mesmo como animais, como alguns israelenses dizem em pronunciamentos oficiais, você acha que isso se tornou ainda mais conveniente, sem nem mesmo precisar olhar o inimigo nos olhos?

Claro, desde o desenvolvimento da artilharia, temos tido uma matança despersonalizada, não é mesmo? Isso tudo leva a outro nível. Mas a desumanização dos palestinos é absolutamente fundamental. No final do século 20, no Ocidente, reconhecemos que o colonialismo não era aceitável. Não temos o direito dado por Deus de sair pelo mundo dominando povos de pele mais escura que a nossa, com uma enorme exceção: Israel. Suas origens são bastante complicadas e diferem bastante de outras sociedades colonizadoras. Agora, como eles podem se safar dessa situação? De certa forma, isso remete à sua pergunta anterior. Por que isso é tolerado, enquanto não foi tolerado na África do Sul, na Rodésia, na Argélia, no Vietnã e assim por diante?

E a acusação de antissemitismo carrega uma ressonância tão terrível e terrível na história europeia que, no momento em que é invocada, as pessoas tendem a se desligar. E isso facilita a desumanização dos palestinos. No momento em que você os mancha com esse terrível pecado histórico, é muito mais fácil desumanizá-los. Mas sim, essa desumanização é absolutamente fundamental. Porque, para brutalizar as pessoas, o pré-requisito psicológico é a desumanização. E é muito importante entender por que e como a desumanização do povo palestino progrediu e foi permitida. E esta manhã, de fato, aconteceu algo extraordinário.

O jornal The Guardian publicou uma resenha de um filme que tinha acabado de ser lançado sobre o dia 7 de outubro. Dizia que era muito poderoso, comovente e assim por diante. E apontava que o filme desumanizava bastante os palestinos, porque eles apareciam apenas como homens barbudos com armas. Não havia contexto nem nada. E o The Guardian, que supostamente é um jornal liberal, diante das críticas, na verdade retirou o artigo esta manhã, o que é absolutamente surpreendente. Ele o retirou de seu site porque havia cometido o pecado de apontar a desumanização dos palestinos.

Há também um novo componente nessa guerra, que não é apenas a transmissão ao vivo da tortura e do assassinato de civis, mas também, como você mencionou antes, a criação de conteúdo para a mídia social, como vídeos de soldados israelenses dançando entre as ruínas, destruindo casas, vestindo as roupas de pessoas que eles assassinaram ou deslocaram, jovens israelenses em festas cantando que vão incendiar as aldeias. Como você acha que isso influencia a visão do mundo sobre o que acontece lá?

O mundo ocidental ficou um pouco protegido dessas imagens. Mas se você acompanha as mídias sociais destes soldados, vê tudo. E é impressionante como houve um certo pânico em relação ao TikTok porque os líderes políticos estão cientes de que os jovens estão vendo todas essas imagens, que não chegam à grande mídia. Mas isso realmente foi parte do objetivo de fazer o filme. Quero dizer, existe aquele velho ditado: quando as pessoas mostram quem são, acredite nelas.

No Ocidente, mesmo quando não estamos apoiando Israel diretamente, tendemos a dizer que é complicado, que tem nuances. E o que estamos dizendo no filme é para ouvir os próprios israelenses, principalmente os soldados, mas também os políticos, outros meios de comunicação israelenses, as mídias sociais israelenses, principalmente quando as pessoas estão falando em hebraico. E eles claramente não acham que haja qualquer nuance ou complexidade. A linguagem é genocida. Frequentemente se trata de limpeza étnica. E está lá para o mundo ver, se ele quiser ver. Sabe, como sempre dizemos no filme, ninguém pode dizer que não sabia: os israelenses estão nos contando o que estão fazendo e porque estavam fazendo, estão postando isso no TikTok.

Uma investigação recente da ONU mostra que Israel tem bombardeado intencionalmente hospitais e equipamentos de saúde em Gaza, algo que vocês também mostram no documentário. Você pode falar um pouco sobre o que viu nesse sentido?

A Faixa de Gaza tem 36 hospitais. E todos eles foram atacados. Cada um deles foi atacado. E metade deles foi totalmente desativada. E os israelenses não apresentaram uma única prova de que eles estão sendo usados como bases militares. Portanto, o relatório da ONU de alguns dias atrás está simplesmente apontando o óbvio – que os israelenses estão tentando destruir o sistema de saúde em Gaza, como parte de sua campanha para tornar Gaza inabitável.

Filme acompanha invasão e destruição de um hospital em Gaza

Você vê um fim para esse conflito? E se sim, como ele se parece?

Essa é uma pergunta muito sombria e deprimente. Como eu disse, Israel compartilha as características de muitas sociedades colonizadoras ao longo da história. Você sabe, sou britânico, criamos a maioria delas, sabemos como essas coisas funcionam. E o problema com as sociedades coloniais é que elas tendem a ser marcadas pelo desprezo racista pela história, pela cultura e, muitas vezes, pela religião do povo indígena, para que os Estados sejam estruturados de modo a garantir a dominação do grupo que chega. E Israel se encaixa perfeitamente nesse tipo de categorização.

Mas se há uma constante na história, é que nenhum povo jamais se resignou a ser cidadão de segunda classe permanentemente em sua própria terra. Isso é simplesmente insustentável. Psicologicamente, emocionalmente, você simplesmente não consegue fazer isso. É inconcebível que os palestinos se resignem por toda a eternidade a viver assim. Agora, o que acontece com a sociedade colonial é que ou ela se torna um país totalmente diferente – Austrália, América do Norte – ou, por fim, o colonizador tem de ir embora ou viver em uma sociedade multiétnica e genuinamente democrática. Portanto, é preciso se perguntar: Israel no final das contas será a Argélia, a África do Sul, ou será a América do Norte, a Austrália?

E você deve se perguntar: daqui a 100 anos, um regime de supremacia racial ainda existirá naquele lugar? E acho que a resposta é não, claramente não existirá. Como isso vai acabar? Acho que o dia chegará,  logicamente é muito do interesse dos israelenses negociar o caminho para esse acordo a partir de uma posição de força, que é onde eles estão agora. Porque provavelmente chegará um dia, talvez muitas décadas depois, em que a solução será imposta a eles, e acho que, quando esse dia chegar, o Ocidente será visto como um amigo muito ruim para os israelenses, porque fomos indulgentes demais.

 

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