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Por Nicoly Ambrosio – Amazônia Real

Nas primeiras horas da madrugada do sábado (4), a poluição da fumaça que persiste em Manaus se tornou insuportável, invadindo as casas e tirando o sono dos moradores. Desde meados de setembro a população manauara sofre com os graves impactos sobre a saúde pública causados pela fumaça tóxica, potencializada pelas queimadas criminosas em todo o Amazonas.

A qualidade do ar chegou a ser considerada perigosa para a saúde humana na parte da manhã quando marcou 440 ug/m3,  segundo o site do projeto Índice de Qualidade do Ar Mundial. O céu se tornou cinza. Nas ruas da cidade, as pessoas sentiram calor, dificuldade para respirar e dores na garganta e nos olhos.

“Eu acordo de madrugada para vir para cá trabalhar e é muito ruim, porque você já acorda inalando a fumaça que prejudica principalmente os idosos e as crianças”, disse o pintor Francisco Silva, 44 anos, em entrevista à Amazônia Real. Francisco estava esperando ônibus em um ponto no bairro da Ponta Negra, zona oeste de Manaus, e relatou que tem filhos pequenos que não podem sair de casa porque ficam tossindo e “sentindo o cheiro forte dessa fumaça”.

O pintor saiu de casa às 4h30 da manhã para trabalhar, quando já estava enfumaçado. “Meus filhos (de 10 e de 9 anos) estão com tosse, garganta inflamada e essa noite sentiram tudo isso. Um deles foi para o Pronto-Socorro da Criança com os sintomas de doenças causadas pela fumaça”, afirmou.

A primeira onda intensa de fumaça que sufoca a cidade de Manaus aconteceu no começo de outubro e adoece a população não só com doenças respiratórias, mas também com problemas nos olhos, na pele e até com doenças cardiovasculares e neurológicas, especialmente em grupos etários mais vulneráveis, como crianças e idosos. De acordo com o epidemiologista da Fiocruz Amazônia, Jesem Orellana, os efeitos da fumaça são associados a problemas respiratórios como obstrução nasal, coriza, sangramento nasal, tosse seca, rouquidão, laringite, rinite, falta de ar e cansaço.

A poluição excessiva também pode resultar em problemas nos olhos, como irritação, vermelhidão, lacrimejamento, visão borrada e até mesmo conjuntivite tóxica/química ou outros problemas oftalmológicos. “A exposição persistente à fumaça de queimadas pode complicar ou atuar como gatilho em doenças pré-existentes como asma, rinite, bronquite, pneumonia, doenças cardiovasculares e neurológicas, além de gerar perturbações no ciclo do sono ou ser associada a doenças cardiovasculares e neurológicas, especialmente em grupos etários mais vulneráveis como crianças, gestantes e idosos”, explica Orellana.

Nayara Ferreira, 33 anos, foi entrevistada pela reportagem enquanto estava na orla da praia da Ponta Negra. A autônoma, que mora no município de Rio Preto da Eva, a 50 quilômetros de Manaus, disse sentir muita dor no peito e dificuldades para respirar desde que a fumaça começou a aparecer ainda em setembro. Seu problema foi agravado pela fumaça densa deste fim de semana.

“Lá em Rio Preto da Eva já estamos sentindo o impacto das fumaças também desde setembro, não tem um dia só que a gente não sinta o cheiro de fumaça. Hoje aqui em Manaus está pior, minha irmã mora no bairro Planalto e está muito ruim de respirar mesmo, os meus pais são idosos e sofrem com isso”, relatou.

A trabalhadora doméstica Marineuza Silva, 43 anos, trabalha na Ponta Negra e precisa usar o transporte público todos os dias. Ela já sofre com os efeitos da fumaça e do calor extremo. “Amanhece o dia com essa fumaça e poluição, ainda tem o sol quente e é muito ruim. Queria que Deus mandasse uma chuva para melhorar”, lamenta.

Em casa, pessoas da sua família ficaram doentes com sintomas de gripe e tosse e ela acredita que isso seja causado pela fumaça. Marineuza afirma que de manhã cedo o “fumaceiro” é pior ainda, pois não se vê nada. “Não consigo nem usar máscara porque fica pior, fico ainda mais sufocada”, disse.

Com o problema, muitas pessoas voltaram a usar máscaras para sair de casa na manhã de sábado. Nas ruas do centro de Manaus, o estudante de Direito da Universidade Federal do Amazonas (Ufam), Luivan Rodrigues dos Santos, 19 anos, relatou que está doente por conta da fumaça das queimadas, que agravam seus problemas respiratórios.

“Infelizmente eu ainda vejo que muitas pessoas não têm consciência da gravidade do impacto dessa poluição. Ela é nociva à saúde, especialmente daquelas pessoas que têm comorbidades respiratórias, como é o meu caso. Eu enfrento alguns desses problemas e sinto na pele o impacto da fumaça”, alertou.

A feirante Lorena Silva, de 37 anos, trabalha na região da praça da Matriz, no centro, e afirma que com a fumaça as coisas pioraram até financeiramente. “Além de afetar a nossa saúde, afetou também a parte financeira de todo mundo. Muitas pessoas que trabalham com frutas e verduras estão prejudicadas.” Ela chegou de manhã no centro para trabalhar. Lorena está gripada e tossindo, ela acredita que seja por conta da fumaça.

Edmilson Farias, 69 anos, motorista de um ônibus que trabalha com turistas na parte central, afirma que as pessoas não estão indo fazer o passeio porque a fumaça está incomodando. Ele já teve que cancelar uma viagem no sábado retrasado, porque “não tinha condições”. “O ônibus fica aberto lá em cima e o pessoal não aguenta a fumaça”, disse.

Edmilson afirma sentir falta de ar  e seus olhos e garganta ardem. “Hoje eu senti o cheiro de fumaça muito forte quando abri as janelas de casa lá no Lírio do Vale, onde eu moro. Encheu de fumaça a minha casa.”

Foto: Marizilda Crupe/Greenpeace

Nas redes sociais, mais uma vez os manauaras denunciavam o desespero vivido dentro das casas. O cheiro forte de fumaça entrava mesmo com as janelas fechadas e causou incômodo, levando a manifestações. De outras cidades próximas a Manaus, vídeos e fotos do céu encoberto pela fumaça também foram publicados.

“Aqui também está encoberto pela fumaça, e também é uma cidade muito afetada pela estiagem”, escreveu uma usuária de Silves, no interior Amazonas.

Além da maior e pior seca em 121 anos, o Amazonas enfrenta as queimadas que já somam mais de 15 mil focos nos últimos três meses. Os dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) apontam que entre 1° e 31 de outubro deste ano, foram registrados 3.799 focos de queimada no estado, um aumento de quase 620,75% em relação ao mesmo período no ano passado.

A pesquisadora Karla Longo, responsável pelo monitoramento de queimadas do Inpe, alertou em entrevista à Amazônia Real neste que a fumaça está bastante densa e a situação é grave. O Inpe informa que a fumaça vem dos focos de queimadas registrados ao longo do rio Amazonas, próximo a Manaus e de cidades do Pará.

“Ao longo do rio Amazonas tem queimadas e muito perto de Manaus também. As queimadas estão transformando fumaça transportada para Manaus. Mas é no Pará que a situação está pior. O estado está queimando por inteiro”, disse a pesquisadora, neste sábado (04).

A tendência é que esse cenário se mantenha, afirma Longo, pois não há previsão de chuva em vários lugares da Amazônia. “Pelo menos nos próximos dias não terá chuva e quando começar a chover o alívio só será imediato, apenas durante a chuva.”

O governador do Amazonas, Wilson Lima (União Brasil), continua afirmando que a responsabilidade pela fumaça que cobre Manaus é de outros Estados. Em vídeo, Lima afirma que o fenômeno é causado por queimadas que estão acontecendo no Pará e, em menor intensidade, na Região Metropolitana de Manaus.

“Hoje, o que nós sofremos é uma injustiça climática. Não somos nós os causadores dos problemas que nós estamos enfrentando neste momento”, afirmou o governador.

Tráfego em Manaus, com céu encoberto de fumaça

Em outubro, na primeira “onda” de fumaça intensa, o superintendente do Ibama no Amazonas, Joel Araújo, informou que a fumaça que encobre a cidade vem da região metropolitana e é causada por agropecuaristas. A fumaça é o resultado das queimadas nos municípios de Careiro e Autazes, e está sendo trazida para Manaus por massas de ar.

No entanto, o governo do Amazonas negou a relação das queimadas com a fumaça que toma conta da cidade de Manaus. Em entrevista, Wilson Lima disse que o problema foi agravado por uma série de fatores, como o fenômeno El Niño e a estiagem. O governador afirmou ainda que o Amazonas “está pagando por um problema que não foi ele que causou”, se referindo à crise ambiental.

“O Estado do Amazonas e o Brasil não são os maiores poluidores do mundo. Nós estamos pagando um preço por conta da poluição de países ricos, que muitas vezes tentam colocar a Amazônia no banco dos réus”, disse no mês passado.

O geógrafo Carlos Durigan, diretor da WCS Brasil, destacou que se não houver articulação e colaboração efetiva, as frentes de ação diante desses crimes ambientais se tornam frágeis.

“Eu entendo como super necessária a junção efetiva de esforços em todos os níveis, em especial precisamos ter os níveis federal, estaduais e municipais alinhados e atuando de forma conjunta. As diversas áreas da gestão também devem estar coordenadas entre si e não somente as pastas responsáveis pelas políticas ambientais. Apesar de vermos um esforço em curso neste sentido, no Amazonas por exemplo, a atuação conjunta entre a Sema (Secretaria Estadual de Meio Ambiente do Amazonas), ICMbio, Ibama e mesmo o Ministério do Meio Ambiente, a adesão de alguns municípios nesta frente, ainda vejo que há setores políticos que atuam em outro sentido, negando fatos e a realidade óbvia que vivemos e ainda insistindo em agendas que fortalecem a manutenção deste cenário de destruição e degradação”, denunciou.

O cientista explicou que o resultado da omissão das autoridades e de práticas efetivas contra a destruição causada pelos agropecuaristas, é este cenário apocalíptico que parece não ter fim. “Sabemos que o desmatamento e as queimadas e todas as perdas que se seguem têm na sua origem a expansão da agropecuária na região e esta frente de grande destruição precisa mudar”, disse.

Para ele, em tempos de ebulição global, não dá mais para adiar o combate enérgico aos crimes associados a degradação, que incluem desmatamento e queimadas ilegais e ainda ocupação ilegal de terras públicas. Diante disso, Durigan pede pela retomada do Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal  (PPCDAm) e pela adesão de todos os entes públicos, assim como a sociedade, a esse plano.

“Já gerou uma redução do desmatamento, mas ainda precisamos fazer mais e isso implica mudarmos a visão de que atividades produtivas que geram desmatamento e queimadas na região podem avançar sem controle”, alertou o cientista.

Segundo o epidemiologista Jesem Orellana, a situação é extremamente preocupante, pois abre não só um trágico e tóxico capítulo da destruição da Amazônia, como também representa a deterioração ainda maior das condições de vida e de saúde da população, em particular dos mais vulneráveis.

“Diante de um cenário tão crítico é inevitável que a maioria das pessoas apresente sintomas diversos, pois o corpo reage, se desgasta e até falha em situações mais extremas. Pessoas com doenças pré -existentes, como as respiratórias e cardiovasculares, por exemplo, podem enfrentar o agravamento da sua condição clínica e, em situações mais críticas, podem precisar de atendimento médico, internação ou até evoluir para o óbito”, apontou.

No mês passado, a Defensoria Pública do Estado Amazonas (DPE/AM) entrou com um pedido à Procuradoria-Geral da União (PGR) denunciando a calamidade no Estado, apontando que a situação atual da fumaça pode levar a uma crise de oxigênio tão grave quanto a registrada em 2021, no auge da pandemia de Covid-19. Para a defensoria, existe uma inércia por parte do governo diante do grave cenário.

Procurada pela reportagem há quase um mês, por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI), a Secretaria de Estado de Saúde do Amazonas (SES-AM) não respondeu aos questionamentos sobre os dados dos casos de doenças causadas pela fumaça no estado.

 

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