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Grilagem do clima: empresas usam terras públicas para lucrar no mercado de créditos de carbono

Empresas adulteraram dados e usaram terras públicas como se fossem particulares. Créditos permitem compensar emissões de gases de efeito estufa e limpar a imagem com clientes, consumidores e investidores
03/10/2023 | 14h08

A Defensoria Pública do Pará entrou na Justiça contra empresas que lucram com a venda de créditos de carbono gerados em projetos ilegais em áreas florestais do estado em Portel, a 171 quilômetros da Ilha de Marajó. Esse mercado, cada vez mais rentável, consiste na negociação de certificados de iniciativas para redução de emissões de gases de efeito estufa, responsáveis pelas mudanças climáticas. Ou para a captura desses gases, dentre os quais o gás carbônico. Essas iniciativas de combate às mudanças climáticas envolvem a adoção de energia renovável, reflorestamento ou preservação da floresta.

Têm interesse na compra desses créditos empresas que precisam compensar suas altas emissões devido ao seu método produtivo. Um crédito equivale a uma tonelada de gás carbônico. Assim, uma empresa que joga na atmosfera 100 toneladas de gases do efeito estufa poderia comprar 100 créditos para compensar.

Essa compensação das emissões pode estar vinculada a uma obrigação regulatória, definida por um governo. Regulação esta que pode impor, por exemplo, uma taxação ao carbono. E em países onde não há essa exigência, o compromisso voluntário com o clima pode ser motivado pelo próprio mercado, por meio de clientes, consumidores e investidores.

Quase 1.500 famílias assentadas sequer foram consultadas

O problema detectado pela Defensoria Pública do Pará, segundo reportagem do portal g1 publicada nesta segunda-feira (2), é que os projetos geradores de créditos de carbono em questão estão em áreas sobrepostas a cinco assentamentos de Projetos Estaduais Agroextrativistas (PEAEX). Ou seja, terras públicas estaduais já tituladas pelo governo estadual, nas quais vivem mais de 1.480 famílias ribeirinhas. Ao todo, esses assentamentos, em área pública, somam mais de 3,3 mil quilômetros quadrados, área correspondente ao dobro da cidade de São Paulo. Assim, esses projetos desenvolvidos pelo setor privado deveriam ser autorizados pelos órgãos do governo local, o que não aconteceu.

As cinco empresas brasileiras e três estrangeiras (dos Estados Unidos, Canadá e Reino Unido) alvos de ações civis públicas na Vara Agrária de Castanhal, entretanto, negam a irregularidade. E os responsáveis por essas empresas, que não tiveram o nome divulgado, alegam que os projetos questionados estão em propriedades particulares.

Para piorar a situação, nenhuma dessas famílias foi consultada pelas empresas quanto à aprovação desses projetos — no caso, de preservação da floresta. Aos repórteres, elas disseram que os representantes não disseram que os projetos eram de crédito de carbono. Tampouco se identificaram com clareza. Muito menos trabalharam junto com as associações e organizações locais. Segundo a legislação, as famílias moradoras em assentamentos agroextrativistas, demarcados pelo governo do Pará, deveriam ter sido consultadas sobre esses projetos antes de começarem.

“Não quiseram responder sobre quem financiava o projeto”

“Um dos questionamentos que fazíamos era sobre quem financiava o projeto. E eles (representantes das empresas) não quiseram dizer. Também não disseram quem era o coordenador, o dono da empresa. Só diziam ser uma ONG”, disse ao g1 Gracionice Silva, presidente da Associação dos Trabalhadores Agroextrativistas do Alto Pacajá, que representa um dos assentamentos. Para a defensoria, esses agentes privados estão faturando com terras públicas de floresta sem a permissão do estado ou qualquer retorno para as famílias que moram ali.

Entre as centenas de multinacionais compradoras desses créditos estão empresas mundialmente conhecidas, como a Bayer, a Air France, Boeing, Braskem, Toshiba, Samsung, Kingston, Barilla, Takeda e até o time de futebol do Liverpool. Todas compraram os créditos para compensar suas próprias emissões de gases do efeito estufa, para cumprir regras ou melhorar a imagem de compromisso com o meio ambiente. As compras, no entanto, foram feitas de modo legal, a partir de uma certificadora de venda de créditos de carbono no mundo, a Verra, uma organização sem fins lucrativos. À reportagem, essas multinacionais alegaram que não tinham conhecimento das irregularidades apontadas pela Defensoria. Já o time de futebol inglês não respondeu.

Para a defensoria, trata-se de grilagem de terras públicas. Isso porque as empresas responsáveis pelos projetos utilizaram 45 matrículas imobiliárias e números de Cadastro Ambiental Rural (CAR) inválidos para enganar a maior certificadora internacional de crédito de carbono. Com as informações fraudadas, as áreas públicas passaram por áreas privadas. Mas os dados foram desmentidos pelo cruzamento de coordenadas geográficas.

Grilagem nas terras públicas

“Essas matrículas integram a prática ilícita da grilagem de terras públicas realizada nos registros dos Cartórios de Breves e Portel, abrangendo áreas multiplicadas apenas em papéis, que não possuem validade jurídica”, diz um trecho das ações.

Em outro, a defensoria aponta que “trata-se de uma prática ilícita realizada pelos requeridos […] para se beneficiarem de área de floresta pública de posse das comunidades tradicionais”. O Ministério Público do Pará também passou a acompanhar os casos por um procedimento extrajudicial. Com base nas ações da Defensoria em Portel, o MP paraense e o Ministério Público Federal emitiram, em julho, uma nota técnica sobre o assunto. Em resumo, recomendam que:

  • o direito à consulta livre, prévia e informada seja resguardado;
  • os contratos de crédito tenham intervenção estatal;
  • a repartição de benefícios advindos pelos projetos seja feita respeitando a autonomia dos povos e comunidades tradicionais;
  • e as empresas certificadoras ou beneficiárias de crédito de carbono criem auditorias que comprovem a garantia dos direitos das populações locais e ouvidorias externas para o encaminhamento de denúncias.

Na falta de regulação, lucro é desconhecido

Pelo fato de cada contrato de compra e venda de crédito de carbono ser negociado de forma privada entre as partes, já que a questão não foi regulamentada no Brasil, não é possível saber exatamente quanto os projetos lucraram. No entanto, para se ter uma ideia, em 2021, quase 1,4 milhão de créditos do projeto Pacajaí, um dos projetos denunciados, foram usados por empresas para compensar emissões. Naquele ano, o valor médio global dessa categoria de crédito de carbono foi de US$ 5,80.

Portanto, numa hipótese de que todos esses créditos dos projetos no Pará tenham sido vendidos por esse valor em 2021, o total seria de mais de US$ 8,1 milhões naquele ano. Ou R$ 40,8 milhões.

Da Rede Brasil Atual com informações do G1

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