Morreu no domingo, 12 de novembro, em Granada, Espanha, o teólogo José Maria Castillo (1929-2023). Na década de 1980, foi escanteado e marginalizado pela Igreja Católica sob o papado de João Paulo II. No dia 18 de abril de 2017, no Vaticano, o Papa Francisco o reabilitou com a singela declaração: “Li com muito prazer seus livros, que fazem muito bem às pessoas.”[1] Destaco a seguir alguns traços do pensamento de Castillo, que estranha o fato de alguns religiosos se mostrarem tão desumanos.[2]
Por que enfatizamos a divindade de Jesus e pouco falamos da sua humanidade? Talvez porque preferimos admirar a imitar. Encontramos pessoas religiosas que se mostram profundamente desumanas. Neste sentido, a religião se pronuncia como terrivelmente violenta. Segundo José Castillo, só é possível alcançar a plenitude do divino à medida que nos empenhamos para conseguir a plenitude do humano. Para que não soe como generalização solta, sem base teórica e empírica, o autor evoca dois exemplos concretos. Além de não acolherem, os grupos cristãos institucionais se colocaram como obstáculos aos Direitos do Homem e do Cidadão (1789) e à Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948).
Quem deixou uma marca mais forte e determinante na igreja até os dias de hoje? Paulo foi mais determinante e marcou mais a igreja do que Jesus. O autor chegou a essa conclusão não apenas observando a Igreja Católica na atualidade, mas recorrendo à história a partir dos primeiros anos do cristianismo. Alega que os primeiros cristãos tiveram acesso aos escritos de Paulo e só posteriormente conheceram os evangelhos. Em Paulo, sabidamente interessava mais o Cristo glorificado do que o Cristo encarnado.
Existem três temas atuais que parecem ser espinhosos para a igreja. Dependendo da referência que se escolha no Novo Testamento, o resultado pode ser bem diferente. Sobre desigualdade da mulher, homossexualidade e a escravidão, dependendo da opção da base, se Jesus ou Paulo, as implicações e deduções podem ser bem distintas.
Em qualquer leitura, mesmo superficial, dos evangelhos, fica evidente a postura de Jesus em relação às mulheres no sentido de respeitá-las e dignificá-las, mesmo na cultura em que as mulheres eram desrespeitadas e inferiorizadas. Jesus destoa da sua cultura. O mesmo não podemos falar de Paulo. Ele reproduz nos seus textos os códigos familiares existentes na sua cultura. Paulo é incisivo ao afirmar a dependência da mulher em relação ao pai (I Coríntios 7.36-38) e em relação ao marido (I Coríntios 11.3-7; Efésios 5.22-23; Colossenses 3.18; Tito 2.5). Em Paulo, o valor da mulher dependia do homem, seja o pai ou o marido. Neste tópico, na atualidade, a quem a igreja seria mais fiel, a Paulo ou a Jesus?
Quanto à homossexualidade, não encontramos nos evangelhos qualquer referência ao tema. Jesus não se pronunciou. Não há registro de palavras de Jesus sobre condenação do prazer sexual. Portanto, haveria grande dificuldade de afirmar uma moral sexual atrelando o prazer ao pecado tendo Jesus como voz de autoridade. O mesmo não podemos falar de Paulo. O apóstolo adverte que o fruto da idolatria é a imoralidade e na extensa lista de imoralidades figura em primeiro lugar a homossexualidade (Romanos 1.24-28). Paulo considerava a homossexualidade como antinatural. Ele também catalogou como antinatural os homens terem cabelos longos e as mulheres terem cabelos curtos (I Coríntios 11.14-15). A lista de Paulo sobre moralidade ampara-se muito mais nos conceitos helenísticos e na religião judaica do que propriamente nas concepções evangélicas inspiradas em Jesus. Na atualidade, por qual ética a igreja é reconhecida, pela ética moralizante de Paulo em que importa domar os vícios ou pela ética de Jesus em que a ênfase recai na busca por aliviar o sofrimento humano? Pela ética sugerida por Paulo, os que não controlam os seus vícios e vivem entregues as suas paixões não devem “nem se sentar à mesa” (I Coríntios 5.11). Enquanto a ética de Jesus propõe o extremo oposto. O mestre não espera, mas toma a iniciativa para sentar-se à mesa com pecadores e publicanos (Lucas 15.1-2; Marcos 2.15-17; Lucas 19.5-6). Paulo nasceu em Tarso, cultura helenística. Foi educado e manteve-se rigidamente identificado com a cultura judaica. Sobre a homossexualidade, Paulo reproduz o pensamento da sua cultura e não o evangelho de Jesus.
E finalmente, a escravidão. A história da escravidão remete para muito antes dos anos vividos por Jesus e Paulo. Também não era um fenômeno restrito geograficamente à Palestina. Não seria difícil, seja pelo aspecto temporal ou geográfico, confundir a escravidão com um traço humano natural.
Igrejas com mais religião do que humanidade.
Jesus traduziu o “Reino de Deus” como o amor que procura os desprezados e marginalizados. No ensino e na prática, Jesus colocou no centro das atenções aqueles que eram desprezados: pobres, mulheres, publicanos, prostitutas, samaritanos, crianças etc. Enquanto as ênfases de Paulo para traduzir o “Reino de Deus” são outras. Se em Jesus por reino de Deus entende-se a humanização que busca aos que mais sofrem, em Paulo o destaque recai sobre a moralização que isola os ímpios. Na leitura paulina, “Reino de Deus” é um combate sem trégua ao pecado.
Essas breves considerações para dizer que Paulo foi fortemente influenciado pelo gnosticismo. Viveu no contexto urbano de então com as devidas demarcações institucionais e legais do Império Romano. Por fim, mas não o último traço, Paulo viveu intensamente como judeu procurando manter as tradições paternas. Paulo se autodefiniu como um judeu extremamente zeloso.
O estranhamento de Castillo não consiste em apresentar Paulo como um moralista que não compreendeu a mensagem de Jesus. O núcleo central do livro é outro: por que a igreja prefere a ética moralista paulina à ética humana pregada e vivida por Jesus?
O fator decisivo na conduta da grande maioria das pessoas crentes não é a ética, mas os ritos (p. 105).
Uma forma de testar essa hipótese: como os crentes da igreja são identificados pelos não-crentes que se mantêm fora da igreja, pelo ritual religioso ou pela exemplaridade ética? Por essa linha argumentativa é que Castillo adverte: há mais religião do que humanidade na igreja; o pensamento de Paulo é mais perceptível do que a mensagem de Jesus, na igreja.
[1] MORRE José Maria Castillo. Instituto Humanitas Unisinos, 13 nov. 2023. Disponível em: https://www.ihu.unisinos.br/categorias/634146-morre-jose-maria-castillo-castillo-foi-um-grande-teologo-um-profeta-uma-parteira-da-primavera-e-uma-pessoa-celestial . Acesso em: 15 nov. 2023.
[2] CASTILLO, José M. A humanidade de Jesus. Petrópolis, RJ: Vozes, 2017.
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