Por Isabel Harari — Repórter Brasil
Uma garota por volta de cinco anos coloca a mão atrás de um pacote de pirulito para que a câmera focalize o produto: “aqui, gente!”, diz para mais de 380 mil seguidores no TikTok. No vídeo, a pequena influenciadora experimenta diferentes tipos de balas para decidir qual é o melhor sabor.
Em outro, uma menina da mesma idade mostra o material escolar recém-comprado para 82 mil pessoas no Instagram. Com mais de 6,1 milhões de seguidores no TikTok, um menino de seis exibe o seu penteado no “dia do cabelo maluco”.
O fenômeno dos “influenciadores mirins” tem ganhado tração no Brasil. Por aqui, 93% da população entre 9 e 17 anos usam a internet e três a cada quatro jovens sonham em produzir conteúdo. Das 25 milhões de crianças e adolescentes online, a grande maioria (83%) tem perfil em alguma rede social.
À primeira vista, dancinhas e publis soam inofensivos, mas a presença ostensiva nas redes sociais acende o debate sobre os limites entre trabalho e diversão, e sobre a exposição à publicidade infantil irregular.
O ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) garante a livre expressão artística desse público, mas também é firme sobre a proteção de direitos. Na televisão e no teatro, por exemplo, o trabalho infantil só é permitido mediante autorização judicial. A aplicação dessa norma ao universo online, no entanto, ainda é um desafio.
Plataformas como TikTok e Instagram proíbem o cadastro de pessoas com menos de 13 anos. Porém, é comum encontrar perfis de influenciadores abaixo dessa idade. Para contornar as restrições, as contas são abertas com datas de nascimento imprecisas ou administradas pelos pais.
O vácuo de regulamentação e fiscalização tem gerado casos de crianças que fazem anúncios de jogos de azar e de alimentos ultraprocessados, além de coachs mirins que pregam até mesmo o abandono da escola.

ECA diz que trabalho artístico precisa de alvará judicial, mas plataformas não exigem. (Foto: Brenno Carvalho/O Globo)
“A criança tem os mesmos direitos no ambiente digital e físico”, afirma Ana Elisa Segatti, procuradora do MPT (Ministério Público do Trabalho). “É preciso que haja uma regulamentação [para as redes sociais] que preserve o desenvolvimento do trabalho infantil artístico de forma sadia”, defende a procuradora.
Esse entendimento é compartilhado pela ONU (Organizações das Nações Unidas). Em 2021, a entidade lançou um documento reforçando que os direitos das crianças se estendem ao mundo digital. O texto enfatiza a responsabilidade compartilhada entre famílias, estado e sociedade — incluindo as empresas – para assegurar os direitos das crianças.
A Repórter Brasil entrou em contato com Instagram, TikTok e YouTube. As plataformas reforçaram seus compromissos com os direitos das crianças e adolescentes, e elencaram uma série de medidas para evitar o trabalho artístico infantil sem conformidade com a legislação brasileira. As respostas podem ser lidas na íntegra neste link e ao longo da reportagem. Especialistas ouvidos pela reportagem, no entanto, colocam em xeque a eficácia das políticas adotadas pelas Big Techs.
‘É importante estar sempre postando’
A Repórter Brasil conversou com três artistas e influencers mirins. Todos foram contatados por meio de seus responsáveis legais, que também concederam entrevistas para esta matéria.
“É uma grande brincadeira para mim”, conta Giu Cota, de 14 anos. Aos dois anos, ele ganhou o primeiro tablet. Quando completou quatro, seus pais criaram um canal no YouTube, onde passou a publicar seus vídeos. Hoje, ele se define como um “bombril”: comanda um podcast semanal, canta, dança e escreve em um portal online.
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São horas dedicadas à produção de conteúdos, veiculados praticamente todos os dias em diversas plataformas. “É bem importante a gente sempre estar postando”, explica a atriz Sabrina Souza, de 9 anos. “Tem hora que eu pego no pé dela: ‘filha, você não falou com ninguém hoje nos stories’. Tem que postar todo dia’”, complementa Karine de Souza, a mãe.
Aos poucos, a produção vai se profissionalizando e contando com a participação de familiares. “Colocamos tripé, iluminação, começamos a ver o cenário, a centralizar mais o rostinho dele”, conta Rosy Dantas, a “mãepresária” de Giu, como ela mesma se define.
“Eu vejo muita gente que começou no TikTok e hoje em dia está super viral. Postar ajuda na minha carreira”, ressalta a cantora Sarah Vitória da Aleluia Santos, de 14 anos, conhecida como Mc Sarah Babyy. “Se a música viralizar, a gente tá feita. Mas, enquanto não viraliza, a gente vai gravando, fazendo show e postando”, acrescenta sua mãe, Tatiana Maria da Aleluia.
Giu garante que sua rotina “é como a de qualquer outro garoto”. Ele produz conteúdos diversos, de entrevistas com famosos a dicas de saúde. Vez ou outra, posta um vídeo com uma dancinha para viralizar. “Eu sei dançar, mas eu odeio gravar. Eu gravo porque às vezes é preciso, é a profissão”, relata.
“Isso acontece quando o espontâneo se torna compulsório”, resume Renata Tomaz, professora da Escola de Comunicação, Mídia e Informação da Fundação Getulio Vargas (FGV Comunicação Rio). “A plataforma vai dar mais visibilidade e possibilidades de monetização para a pessoa que produz muito conteúdo”, explica.
Foi o que aconteceu com a Sabrina. Quando tinha “de quatro para cinco anos”, um vídeo dançando em um shopping atingiu quase três milhões de visualizações.“Eu falei: ‘mãe, vamos continuar, se a gente fizer mais, a gente vai ter mais de mil seguidores’”, lembra. Hoje, mais de 40 mil pessoas acompanham o dia a dia da criança no Instagram.
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ECA: trabalho artístico precisa de alvará judicial
Em março, o governo federal lançou um guia com uma série de recomendações para o uso saudável de telas por crianças e adolescentes. As orientações para os influenciadores mirins são claras: o trabalho artístico infantil tem “caráter de exceção” e só é permitido mediante autorização da Justiça.
Essa é uma determinação do Estatuto da Criança e do Adolescente, segundo a qual o trabalho tem de ser precedido de alvará judicial. O documento deve ser solicitado pela família ou empresa interessada, e precisa estabelecer parâmetros mínimos para a atividade acontecer — como limitação de horas e o tipo de conteúdo produzido.
Além do ECA, essa exigência está prevista na Convenção nº 138 da OIT (Organização Internacional do Trabalho) e na Recomendação nº 24 do Conselho Nacional do Ministério Público.
Nenhum dos influenciadores entrevistados pela Repórter Brasil, porém, conta com autorização judicial para atuar nas plataformas digitais. As mães dos três acompanham de perto o trabalho, assegurando que as atividades não atrapalhem os estudos e os momentos de lazer dos filhos. Segundo elas, o alvará nunca foi exigido pelas big techs.
“Geralmente, só pedem alvará quando é presencial. A gente tem que providenciar a documentação quando é trabalho em séries [de televisão ou streaming]. Mas nada relacionado ao Instagram precisa de autorização”, relata Karine, mãe de Sabrina, referindo-se a uma produção estrelada pela filha na Globoplay. Segundo ela, o TikTok também nunca solicitou esse tipo de documentação.
“A plataforma é como se fosse um palco de teatro. Se a criança for atuar no teatro, tem que ter a autorização para subir no palco. Então, também tem que ter uma autorização para a plataforma digital”, resume Ana Elisa Segatti, do MPT.
Segundo a procuradora, a fronteira entre trabalho e lazer é nebulosa, mas existem elementos para identificar a profissionalização. A frequência das postagens, a expectativa de monetização e o incremento da produção — com investimentos em cenário, roteiro e equipamentos de gravação — são alguns deles.
Adriana Sena Orsini, professora e pesquisadora do Programa de Pós-graduação da Faculdade de Direito da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), também reconhece um hiato entre a lei e o que acontece na internet. “Precisamos esclarecer para os influenciadores e para seus pais que precisa ter autorização”, reforça.
Para Orsini, as plataformas têm um papel fundamental: “elas precisam entrar nessa questão e têm as condições para fazer o monitoramento. Seria um sistema de proteção virtuoso”, afirma a professora.
TikTok foi condenado por permitir trabalho sem autorização
Esse tema vem movimentando a Justiça do Trabalho em São Paulo. Em novembro do ano passado, o TikTok foi condenado em primeira instância por não tomar providências contra a exploração do trabalho infantil artístico em sua plataforma. A decisão obriga a empresa a não permitir a atuação dos influenciadores mirins, a menos que haja autorização judicial.
“Ela [plataforma] é a responsável por possibilitar que os conteúdos estejam em seus serviços, o que permite a exploração comercial de crianças. Além disso, a reclamada também lucra com a prática, porque é o principal instrumento do modelo de negócio da internet”, afirmou a juíza Solange Aparecida Gallo Bisi, da 31ª Vara do Trabalho de São Paulo.
A empresa recorreu ao Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região (TRT-2), mas não obteve sucesso. “Não se considera a responsabilidade da ré pelo conteúdo difundido em si, mas sim pela ausência de cumprimento do seu dever legal de exigir a apresentação de alvará para a difusão do conteúdo em sua plataforma”, diz acórdão publicado na semana passada. “Não se trata de censura, mas de garantir o cumprimento das normas de proteção à criança e ao adolescente”, continua a decisão.

No Brasil, 93% da população entre 9 e 17 anos usam a internet e três a cada quatro jovens sonham em produzir conteúdo
“As plataformas são empresas globais, mas estão presentes e lucrando a partir de consumidores locais. As big techs precisam conhecer o que o Brasil entende como os direitos das crianças”, reforça Renata Tomaz, da FGV.
Em 2018, o STF determinou que a Justiça comum é quem pode autorizar trabalho artístico infantil. A Repórter Brasil enviou pedidos via LAI (Lei de Acesso à Informação) para os Tribunais de Justiça de São Paulo e Rio de Janeiro, importantes polos de produção cultural, sobre alvarás para crianças e adolescentes que atuam em plataformas digitais.
O TJ-SP afirmou que não seria possível consultar os autos de forma automatizada. No Rio de Janeiro, o pedido aguarda apreciação pela presidência do tribunal.
Plataformas afirmam monitorar crianças
A Repórter Brasil enviou uma série de perguntas para o YouTube, Instagram e TikTok para entender como funciona o monitoramento de contas de influenciadores mirins.
O YouTube respondeu que sua função é “fornecer um espaço” para o compartilhamento de vídeos. “A responsabilidade de garantir que o conteúdo esteja em conformidade com as leis locais, incluindo a obtenção de alvarás judiciais para trabalho artístico infantil quando e se necessário, recai sobre os criadores de conteúdo e, no caso de menores, sobre seus pais ou responsáveis legais”, diz o texto.
A empresa destaca que os criadores de conteúdo devem seguir as leis e regulamentações aplicáveis. As Diretrizes da Comunidade da empresa, no entanto, não detalham quais são as regras no Brasil. De acordo com o YouTube, isso acontece porque a orientação disponível na plataforma é destinada para um público global.
O Instagram reforçou o limite de 13 anos para fazer o cadastro na plataforma.“Se ficar evidente que a conta está sendo usada de forma consistente ou gerenciada diretamente pela criança, desativaremos a conta”. Em relação ao conteúdo publicitário, a empresa da Meta disse que restringe a monetização de contas que publicam conteúdos voltados para crianças.
O TikTok foi na mesma linha e informou que a conta do usuário pode ser banida caso a empresa descubra que é operada por uma pessoa com menos de 13 anos.
A Repórter Brasil perguntou como funcionam as contas de influenciadores mirins. De acordo com TikTok, se os pais ou responsáveis quiserem criar uma conta com conteúdos de seus filhos, devem deixar claro que ela pertence ao adulto em questão, “incluindo o envolvimento adulto no conteúdo”. Caso contrário, as contas são banidas. “Não permitimos contas que apresentem apenas menores de 13 anos e não sejam claramente operadas por um pai ou responsável”.
Ana Segatti, do MPT, defende que independentemente de quem seja o responsável pela conta, se o perfil for estrelado por uma criança e tiver elementos que caracterizam o trabalho artístico infantil, “há necessidade de serem observados os requisitos legais, inclusive com a expedição de alvará judicial para divulgação do conteúdo”.
Promessa de mobilidade social impulsiona influenciadores na internet
O YouTube é a plataforma preferida dos jovens até 13 anos. Apesar de vetarem o cadastro de perfis abaixo dessa idade, Instagram e TikTok também despontam como aplicativos de interesse de crianças. O levantamento foi feito pela plataforma de conteúdo Mobile Time e pela empresa de pesquisas Opinion.
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O discurso da meritocracia e do empreendedorismo é o que tem impulsionado a migração do mercado de trabalho para as plataformas digitais, avalia o antropólogo Wagner Alves-Silva. “Quanto mais você é visto, maior é a chance de converter esse alcance em dinheiro”, explica ele, que também é pesquisador do Laboratório de Economia Digital e Política Extrema, vinculado à Universidade de Dublin.
“A ideia de que a distância entre uma criança e o sonho de ser atriz, por exemplo, ficou menor. A internet promete que tudo é possível, mas essas promessas são precárias e se dissolvem.”, pondera Alves-Silva.
“Eu estou investindo. Se estourar uma música, estourou. Mas, por enquanto, a gente só tem prejuízo”, relata Tatiana, a mãe da cantora Sarah Babyy. Entre a escola e os shows, produz clipes, danças e vídeos de suas músicas para as redes sociais.
Para Alves-Silva, a internet emerge como uma promessa de mobilidade social e realização profissional para os influenciadores e suas famílias. Um discurso comum entre os próprios influenciadores mirins: “O meu maior medo hoje em dia é acordar e ir para um escritório e ficar na frente de um computador. O meu maior terror é fazer algo que eu não acordo falando: ‘nossa, eu vou gravar podcast, que da hora!’”, finaliza Giu Cota.
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