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Eliana Alves Cruz

Eliana Alves Cruz é carioca, escritora, roteirista e jornalista. Foi a ganhadora do Prêmio Jabuti 2022 na categoria Contos, pelo livro “A vestida”. É autora dos também premiados romances Água de barrela, O crime do cais do Valongo; Nada digo de ti, que em ti não veja; e Solitária. Tem ainda dois livros infantis e está em cerca de 20 antologias. Foi colunista do The Intercept Brasil, UOL e atuou como chefe de imprensa da Confederação Brasileira de Natação.

Insanidades em praça pública

Internação compulsória: um drama a céu aberto
23/11/2023 | 06h00

“O que melhora o atendimento é o contato de uma pessoa com outra.
O que cura é a alegria. O que cura é a falta de preconceito”.
(Dra. Nise da Silveira)

População em situação de rua no centro da cidade.

População em situação de rua no centro da cidade do Rio de Janeiro.

Acompanhei ao longo da semana os debates sobre a possível internação compulsória de pessoas em situação de rua, usuárias de drogas, na cidade do Rio de Janeiro. O tema vai e volta com relativa frequência. Agora veio à tona após o falecimento de um homem por overdose no entorno do estádio Engenhão.

Caminhando pelo meu bairro, fiquei a observar as pessoas que perambulam, que têm seus pontos fixos de dormida e de refúgio, que são nitidamente usuárias de alguma coisa. Impossível não relacionar esta condição e os transtornos mentais de um grupo quase 100 por cento preto.  Bateu uma melancolia, porque pensei na história da minha gente. Tenho inúmeros amigos e pessoas conhecidas que possuem alguém seu que já passou ou passa por isso. Pensei: “Como adoecemos tanto e tão profundamente…?”.

O que trago aqui hoje é um depoimento sobre uma experiência privada, mas ao mesmo tempo pública, visto que escrevi um livro inteiro calcado nela.

Quem leu o livro Água de barrela sabe. Aquela história de passado me foi grandemente (e lindamente) contada pela minha tia avó, Anolina, a “Tia Nunu”, que está com 102 anos e desde a infância é diagnosticada com esquizofrenia paranoide. Um dia ela já foi um tabu para nós, mas hoje ela significa um grande aprendizado familiar. Um enorme resgate coletivo de amor.

Cresci e entrei na vida adulta olhando com medo para aquela mulher que falava sozinha, que imaginava mundos e personagens e por vezes tinha atitudes ríspidas. Suas histórias de fugas de sanatórios, de períodos longos perambulando pelas ruas e agredindo pessoas, de dependência de álcool, de tristezas inúmeras, eram contadas repetidamente formando um conjunto de dores para as minhas mais velhas que eu não conseguia mensurar. Nunca conseguirei.

O tempo passou e ela, a “louca”, se tornou a pessoa mais velha viva de toda a minha família, logo, para resgatar a nossa história ancestral eu precisaria abordá-la como nunca fiz antes e acessar àquela memória. Eu precisaria perder o meu medo.

A gente só teme o que não conhece. Então resolvi conhecer, decidi estudar sua condição. O que é a esquizofrenia? O que é o transtorno mental? Por que a rua a atraía tanto? Como eu poderia abordá-la de verdade, saber de suas experiências de vida? Este estudo prévio me ajudou a, como dizia dona Ivone Lara, “pisar nesse chão devagarinho”. Foi aí que um aparente milagre se deu.

Quando eu mergulhei no seu mundo e me fiz realmente presente perguntando com interesse verdadeiro sobre sua vida, suas memórias, seus desejos… descobri um universo inédito, uma história poderosa e uma pessoa que era um livro inteiro. Porém, mais do que isso.

Descobri que ela contou com uma família que, apesar dos receios, lutas, preconceitos e incompreensões, nunca a abandonou e conseguiu com que ela superasse a dependência de álcool. Vi que era cuidada e acolhida em suas especificidades. Vi que nunca, nem nos tempos mais duros e violentos, minhas mais velhas deixaram de enxergá-la como um ser humano.

Não sou especialista na área de saúde, de assistência social, de segurança pública. Sou uma cidadã como outra qualquer que observa e pensa a sua cidade, o seu país, o seu mundo, mas na perspectiva das pessoas e sua inegociável condição humana. Escrever é se debruçar nesta janela.

Li uma declaração do secretário municipal de Saúde, Daniel Soranz, afirmando que existem cerca de 130 pessoas que se enquadrariam no perfil do homem falecido perto do estádio de futebol e que já contam com algum tipo de acompanhamento do município. Ora… este contingente não enche um vagão de trem. Lembrei do jovem que não aparentava ter mais que 18 anos e que caiu na porta da minha casa ano passado, ficando sem atendimento por horas, embora tenhamos acionado vários canais competentes. Algo não fecha nesta conta.

A minha experiência particular me faz desconfiar de que estamos apostando e gastando tempo precioso em soluções rasas para questões profundas, não porque não sabemos fazer, mas porque optamos em não ver humanidade atrás da dependência e do mergulho na “inconsciência”. E quem não possui humanidade, não é merecedor dos direitos conferidos a ela.

Como a velha fábula do elefante na sala, talvez, apenas talvez, alguém lucre literal e simbolicamente com as idas e vindas deste paquidérmico incômodo chamado “população que faz da rua a sua casa”, com as ineficazes e repetitivas soluções para o fim deste show dos horrores.

Quem sabe seja realmente um método, pois talvez, apenas talvez, haja quem ache belo e conveniente o desfile da insanidade em praça pública.

 

 

 

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