O filme de Amos Gitai “O último dia de Yitzhak Rabin” é de 2015, mas só em 2023 chega, via “streaming”, às telas brasileiras. O instante não poderia ser mais propício para assisti-lo. Ele nos esclarece como nenhum outro sobre o atual conflito entre israelenses e palestinos, mas não fica por aí. Ele nos esclarece também acerca de um capítulo introdutório fundamental para a compreensão da própria extrema-direita contemporânea em todo lugar.
Quem é Amos Gitai
Amos Gitai foi soldado em uma divisão de helicópteros do exército de Israel durante a guerra de Yon Kipur em 1973. Foi ferido na guerra quando seu helicóptero foi atingido por um míssil sírio. Já durante a guerra, com 23 anos, Gitai filmava em uma câmara super 8 os acontecimentos.
Depois da guerra, decidiu ser cineasta como profissão, e se impôs o desafio de criar um cinema que ajudasse na reconciliação de judeus e palestinos. Embora não tenha tido sucesso na luta que travou — como Darcy Ribeiro, ele certamente não inveja os ganhadores — Gitai criou, no entanto, um cinema sensível, inteligente e engajado destinado a permanecer.
“O último dia de Yitzhak Rabin”
A história de Rabin, assassinado brutalmente por um fanático religioso em 1995, ilustra o último capítulo das tentativas de reconciliação e opção pela coexistência dos dois Estados, Israel e Palestina, em relação pacífica. Rabin é assassinado pouco antes de assinar o tratado de paz com os palestinos, já enfrentando feroz oposição dos setores radicalizados.
Depois disso, teremos fanáticos religiosos e Netanyahu no comando de Israel. E é precisamente na cuidadosa reconstrução deste processo de colonização da política secular por dogmas religiosos que o filme de Gitai mostra toda a sua virtude.
Gitai reconstrói o contexto em que rabinos com prestígio público — não muito diferentes dos nossos Silas Malafaias da vida — passam a acusar Rabin de traição usando preceitos duvidosos do Talmud, a lei religiosa judaica. O preceito principal é o de que qualquer pessoa que traia o povo judeu como um todo, merece e deve morrer. E entregar as terras sagradas da bíblia, ainda que conquistadas pela violência, seria uma traição imperdoável.
A partir daí começa a se gestar o ambiente para o assassinato. Os rabinos passam a incitar o assassinato como supremo sacrifício em benefício do povo judeu. A paz é vista, portanto, como traição tanto pelos radicalizados religiosamente, quanto pelos judeus em assentamentos ilegais que querem expulsar os palestinos de suas terras e roubá-las para si. Netanyahu e o partido Likud surgem como os representantes deste grupo cada vez mais radicalizado e influente na política interna de Israel. Como Bolsonaro, Netanyahu é o oportunista que sabe aproveitar a hora para seu projeto de poder.
Processo de criação
Misturando cenas documentais e de ficção, o que confere ao espectador a perspectiva de quem está participando como observador direto dos acontecimentos, Gitai reconstrói em “câmara lenta” a subjetividade dos personagens principais envolvidos na trama. Essa construção de subjetividades visa expor a mistura, ou pior, a preponderância da religião sobre a política e como ela afeta o comportamento dos personagens. O assassino é reconstruído como ele se vê e é visto por muitos outros: como um herói. Não compreenderíamos sua vida nem sua ação a partir de uma visão de fora, condenatória e distanciada. Este é um dos principais méritos do cinema de Gitai.
O cinema e a vida real
Mas aqui ele toca em algo decisivo que não se restringe mais apenas a Israel. Este é um problema comum a Israel, Estados Unidos e Brasil, apenas para citar alguns exemplos. O principal combustível da extrema-direita é a justificativa moral do conservadorismo e da política do ódio, que advém de leituras religiosas, criadas para justificar situações fáticas de dominação. Gitai mostra o nascimento dessa serpente venenosa e insidiosa no nascedouro. Não à toa, Israel é um símbolo caro para todos os conservadores e fanáticos do Brasil e dos Estados Unidos. A religiosidade pretensamente retirada do velho testamento, nos três casos mencionados, é a base fundamental desta idolatria.
Deixar que a política secular seja guiada por motivos alegadamente religiosos é regredir e desfazer o difícil aprendizado moral que levamos, enquanto cultura Ocidental e enquanto seres humanos, literalmente milhares de anos para construir. O aprendizado mais fundamental neste contexto é o respeito às diferenças dos outros seres humanos. É aqui que se cria o indivíduo como a ideia moral mais importante para todas as dimensões da vida de qualquer sociedade moderna. Em um contexto dominado pela religião este respeito é impossível, já que se cria o outro discordante como inimigo do bem e da virtude, supostamente um monopólio dos religiosos.
A sociedade secular é melhor e moralmente superior porque protege a discordância e o conflito como partes constitutivas do processo de formação pública da vontade coletiva. Relegando, deste modo, a religião à dimensão subjetiva de cada um que deve ser respeitada por todos enquanto tal.
Talvez nada diga mais acerca do perigo representado pela extrema-direita mundial do que a absorção da política pela religião. O Brasil, como Israel, periga se tornar uma teocracia de fato, como Bolsonaro tentou e quase conseguiu. Ao conferir uma distinção moral positiva, justificada religiosamente, a pessoas humilhadas e oprimidas dos setores populares, ela cria um exército cegamente servil aos “mitos”, como Bolsonaro e Netanyahu. A banalização do ódio e de assassinatos é só a primeira página deste livro.
O Brasil periga se tornar uma teocracia de fato como Israel. Michele Bolsonaro disse, na farsa montada na avenida Paulista no último domingo, que o problema do Brasil é precisamente a separação da política da religião. A serpente e o seu veneno estão por todo lugar, embora muitos não vejam. A revolução popular já aconteceu no Brasil e ela não foi o sonho da emancipação das massas sonhado pelos melhores brasileiros. Israel e o filme de Gitai mostram como esse pesadelo termina. E o seu final não é feliz.
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