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Eliana Alves Cruz

Eliana Alves Cruz é carioca, escritora, roteirista e jornalista. Foi a ganhadora do Prêmio Jabuti 2022 na categoria Contos, pelo livro “A vestida”. É autora dos também premiados romances Água de barrela, O crime do cais do Valongo; Nada digo de ti, que em ti não veja; e Solitária. Tem ainda dois livros infantis e está em cerca de 20 antologias. Foi colunista do The Intercept Brasil, UOL e atuou como chefe de imprensa da Confederação Brasileira de Natação.

Quem pode te descansar, preta?

Julho, o mês da Mulher Negra
04/07/2024 | 05h00

Julho chegou e com ele, o mês que no dia dois a Bahia consolidou a independência do Brasil contando com a estratégia da preta Maria Felipa incendiando os navios inimigos. O período do ano em que no dia três o país combate a discriminação racial, pois é aniversário lei Afonso Arinos, a primeira que criminalizou racismo por aqui. O julho do dia 25, que celebra internacionalmente a Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha.

Tanta luta, tanta batalha… mas quem pode te descansar, preta?

Não serão os números, que sempre te esmagam. Eles, os números, disseram ao Censo de 2022 que crianças e adolescentes negras são apenas 13% da população, mas, formam 40% dos casos registrados de estupro no Brasil, o dobro das meninas brancas. Tudo estudo do Núcleo de Estudos Raciais do Insper, baseado nos registros do Sistema Nacional de Atendimento Médico do Ministério da Saúde.

Preta, ninguém pode dizer que você não gritou, que não pediu ajuda. Elza Soares deu o papo em “Maria da Vila Matilde”: “Cadê meu celular? Eu vou ligar pro 180. Vou entregar teu nome. E explicar meu endereço. (…) Cê vai se arrepender de levantar a mão pra mim”. 

Você, garota, entendeu o recado e entre 2010 e 2022 as denúncias de vítimas negras passaram de 7.617 para 39.661…, mas sabemos, ainda falta gente para contar. Como relaxar com essa estatística? Quem está ajudando de verdade a baixar estes índices? Tem alguém?

Lembra do dia dois? Pois é. Maria Felipa liderou 40 mulheres que atraíram e surraram marinheiros com aquela planta venenosa que causa queimadura, a Cansanção, e assim conseguiram incendiar as naus portuguesas ávidas por recolonizar o país. Não fossem elas…

Bem, foi você também quem alimentou soldados, os filhos dos soldados, os filhos dos filhos dos soldados e presidentes e empresários e outras mulheres e famílias… toda a gente de uma nação inteira em mais de cinco séculos!

É sempre assim. Quando a coisa complica, é com você que contam, mas… quem vai te dar um descanso?

Fizemos um poema eu e a mana macuxi, Trudruá Dorico. Você sabe, a coisa aqui é dificílima para elas também. Estávamos voltando de um evento literário, a Fliaraxá, dentro de uma van e escrevemos com a ajuda da Márcia Tiburi, do Estevão Ribeiro e do Marcelino Freire. Porque sim, estamos aceitando braços na revolução que tire o nosso corpo da linha de frente, do pelotão de infantaria e fuzilamento da história deste país.

Precisamos de mais gente disposta a incendiar as caravelas.

Infantaria
Na luta da independência, você me chamou, eu fui;
Na guerra do Paraguai você me chamou, eu fui;
Na guerra dos Farrapos, você me chamou, eu fui;
Na revolução constitucionalista, você me chamou, eu também fui;
Agora é a hora
Você e sua gente, bucha,
pião,
carne de canhão.
Na guerra do Paraguai você me chamou, eu fui;
Na luta da independência, você me chamou, eu fui;
Na guerra dos Farrapos, você me chamou, eu fui;
Na revolução constitucionalista, você me chamou, eu também fui;
Quando você vai ser infantaria,
bucha, pião,
carne de canhão,
Escudo de pólvora
Na minha revolução?

 

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