ICL Notícias

Por Caio Barretto Briso 

Bebia para esquecer que nunca mais veria a pessoa que mais amou. Precisava fazer algo com a dor, algo diferente de sua vontade de morrer, então teve um lampejo: levar uma garrafa de vinho e uma marreta para o cemitério do Caju. Sonhava “destruir a sepultura, abraçá-la mais uma vez”.

“Aos prantos, eu soltei a marreta sem atingir a pedra e a larguei no chão. Peguei na mochila a garrafa de vinho e comecei a beber direto no gargalo sentada ao lado da sepultura. Naquela noite eu não a deixaria sozinha”, conta Monica Benício, 38 anos, em seu livro “Marielle & Monica, uma história de amor e luta” (Rosa dos Tempos), em pré-venda e com lançamento no início de abril.

É uma história de amor que todos conhecem, mas ninguém conhece. Uma história interrompida no dia 14 de março de 2018 em um crime ainda não elucidado pelas autoridades quase seis anos depois. Um amor de ajoelhar-se no chão, tirar aliança do bolso no meio do Circo Voador, pedir em casamento enquanto Mart’nália canta “Namora comigo”.

“Ninguém nunca te amou, ama ou vai amar como eu. Casa comigo?”, perguntou Marielle, antes de ouvir o que queria.

O amor entre duas mulheres da Maré, uma preta e uma branca, o quartinho de R$ 150 que foi a primeira casa delas, a primeira briga e separação, desilusão e perdão, o céu e o inferno a poucos passos de distância. E, há seis anos — essa eternidade —, uma saudade sem fim. Está tudo aí, nas 239 páginas, todos os ciclos do amor e do luto que Monica narra pela primeira vez.

Marielle e Monica na Maré, onde as duas nasceram e foram criadas. Foram 14 anos de relacionamento, entre idas e vindas

Marielle e Monica na Maré, onde as duas nasceram e foram criadas. Foram 14 anos de relacionamento, entre idas e vindas

“Eu achava importante ter essa história contada, é uma história que encontra resistência e desafios. Pra mim, tem um sentido político e pessoal compartilhar minha história de amor para pessoas LGBTs, mas também narrar uma história comum”, disse Monica em conversa com o ICL Notícias por telefone.

A princípio, ela escreveria o livro em um ano, mas a partir do convite da editora, o processo acabou levando seis anos e foi absorvendo outros acontecimentos de sua vida nesse período, como ter se tornado vereadora do Rio de Janeiro pelo PSOL e uma das vozes mais importantes do país na luta por direitos humanos e justiça social. O processo foi longo também porque, na hora de escrever, doía muito.

“Muitas vezes pensei em desistir. Meu terapeuta insistiu para eu continuar”, lembra.

Vontade de desistir após morte de Marielle

Mas em seu íntimo, em momentos específicos do dia — logo ao acordar, ainda na cama —, e em momentos aleatórios — quando conversa com Marielle em pensamento, o que acontece com frequência —, só ela sabe o tamanho do vazio que sente. No mesmo mês em que Marielle foi assassinada, Mônica perdeu 14 quilos.

Monica conta no livro de sua última noite com Marielle: ela acordou assustada com um pesadelo, que já não lembra mais o que era. Foi à cozinha buscar um copo d’água para elas e, quando voltou, Marielle estava sentada na cama. Elas conversaram sobre o pesadelo e começaram a se beijar. “Fizemos amor até o sol se levantar”, escreveu.

“Marielle era minha família, era a construção da minha possibilidade de futuro, na relação que estávamos construindo juntas. Perco minha família, minha confidente, minha melhor amiga, a pessoa que mais me valorizava no mundo. Eu pesava 62 quilos, corria maratona, tinha uma rotina regrada. Parei de fazer o que me dava prazer, parei de comer, parei com tudo que pudesse me remeter à pulsão de vida. No fim daquele março eu estava com 48 quilos”, lembra.

O livro se divide em duas partes: antes e depois do dia 14 de março de 2018. Monica abre a história contando como se conheceram. Ela foi a primeira a chegar na porta da igreja que era ponto de encontro de uma viagem de carnaval que faria com amigas para a praia de Jaconé, perto de Saquarema. Estava ansiosa, era sua primeira vez longe dos pais, queria que todas chegassem logo. Teve que esperar mais do que imaginava porque uma pessoa do grupo, que ela não conhecia, viria com a filha e se atrasou. Era “Marienne”, como Monica a chamou nas primeiras vezes, antes de aprender o nome que repetiria tantas vezes.

No livro, Monica escreve sobre o momento em que viu Marielle pela primeira vez, ela com 18 anos, seu amor com 24:

“Era uma mulher alta, linda, com um sorriso largo e um brilho no olhar que parecia um farol (…) Eu nunca consegui tirar da minha memória aquela fração de segundo na qual olhei para ela pela primeira vez e senti meu mundo, meu coração e minha alma se expandirem”.

“Os dias mais bonitos da nossa vida”

"O que eu jamais poderia imaginar é que só teríamos mais um ano juntas", escreve Monica sobre Marielle

“O que eu jamais poderia imaginar é que só teríamos mais um ano juntas”, escreve Monica sobre Marielle

Entre a “resistência e desafios” da relação aos quais Monica se refere está a rejeição de seu irmão mais velho, com quem ela não fala há dez anos — desde o dia em que contou que namorava Marielle. Muito pior do que as opiniões conservadoras de amigos da igreja católica frequentada por Marielle foi o que seu irmão lhe disse: “Preferia você morta”, como ela conta no livro.

Há muitas passagens em que as duas se declaram, depois de finalmente decidirem viver juntas como uma família. Em fevereiro de 2017, quando foram à Bahia, passaram por Morro de São Paulo, “onde tivemos os dias mais bonitos da nossa vida”, escreve Monica no livro.

“Jamais vou esquecer das nossas declarações de amor na Toca do Morcego, um restaurante em que vimos um pôr do sol cinematográfico e juramos nos amar pelo resto da vida. O que eu jamais poderia imaginar é que só teríamos mais um ano juntas antes de Marielle ser retirada de mim.”

Escrever sobre as lembranças daquele 14 de março, sobre toda sua vida com Marielle, tudo que aconteceu desde então, foi uma forma de processar o luto que, em meio à luta por justiça, ela não se autorizava a sentir.

Alcoolismo: um dia de cada vez

Monica entrou de cabeça no alcoolismo, que já tinha se revelado um problema durante seu mestrado em Arquitetura na PUC–Rio. Foi ainda mais fundo cinco anos após o assassinato, quando perdeu seu melhor amigo: o ex-deputado federal David Miranda, também do PSOL. Ele morreu um dia antes de completar 38 anos, nove meses após ser internado com uma infecção gastrointestinal.

Monica escreve no livro que “David era um teimoso otimista, resiliente, amava a vida sobre todas as coisas. Não foi à toa que, no hospital, a insistência em se recuperar o fez ganhar o apelido de Fênix”. David, escreve Monica, foi aquele que “mergulhou comigo na profundeza da minha dor”.

O que Monica diz sobre David Miranda poderia se aplicar a ela também, que segue na luta por justiça assim como a família de Marielle, com esperança renovada na elucidação do caso desde que a Polícia Federal assumiu as investigações. Desde então, houve muitos avanços, como a negociação de delação premiada de Elcio Queiroz. Para ela, a luta pelo legado de sua mulher tornou-se sua forma de sobreviver. Também ela é uma fênix.

Carta para Marielle

Monica e Marielle adoravam mandar cartas uma para a outra antes mesmo de se entenderem como apaixonadas, quando ainda se viam como amigas. No início da relação, com medo de as cartas caírem em mãos estranhas, costumavam assinar assim: “A.D.M.V.” São as iniciais de “amor da minha vida”.

Não por acaso, o livro se encerra com uma carta — a última de Monica para Marielle.

“Neguei o luto e não fiz essa elaboração. A carta que escrevo no fim do livro virou um elemento importante. Eu não queria fazer isso. Tinha medo desse encerramento. Mas era importante pra minha própria história… Decidi escrever o livro até o fim e, depois de tudo, escrever a carta. Então sentei num domingo para fazer isso. Passei um domingo escrevendo e chorando. No fim, o sentimento foi bonito. Não foi feliz, mas foi bonito”, diz Monica.

Uma das coisas mais dolorosas contadas no livro foi ela não ter conseguido ir ao local do crime na noite do assassinato. Os amigos e parentes que foram à sua casa não permitiram que ela saísse. Também relata como foi difícil não reconhecer o rosto de sua amada, tão modificado pela tragédia e pela maquiagem da funerária. Ficou “irreconhecível”:

“Por uma fração de segundo, eu acreditei que tudo não passava de um engano. Não era a minha Marielle”, escreveu.

“Nunca mais estive sozinha”

Monica reaprendeu a cuidar de si: voltou a fazer terapia, continua o tratamento psiquiátrico com acompanhamento, voltou a se cuidar, até a se permitir amar novamente. Planeja sua campanha de reeleição na Câmara dos Vereadores. Tornou-se também, nos anos de pandemia e de negacionismo, uma voz em defesa da vida e da democracia. Parou de beber ao entrar em um grupo de ajuda:

“Com o adoecimento do David, quis me cuidar. Busco estar presente nas reuniões do grupo de apoio. É difícil, frequento menos reuniões do que gostaria, mas é importante. Hoje entendo que a minha vida é muito melhor sem álcool. Só serve para mim como um processo de autodestruição. Eu preciso me manter sóbria hoje, um dia de cada vez, de 24h em 24h”.

No fim de sua carta para Marielle, Monica afirma que “depois do nosso encontro, eu nunca mais estive sozinha”. Segundo ela, “esse amor é imortal”.

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