Por Fabio Pannunzio
O Brasil possui uma sofisticada legislação inclusiva para tentar purgar vícios do passado, como o racismo e a misoginia, que são renitentes e longevos.
Infelizmente, como é notório, a existência de leis boas, por si só, não consegue mitigar os preconceitos. Note-se, por exemplo, a incidência dos casos de feminicídio, crime tipificado em 2015, que só faz crescer ano a ano.
A internet tem servido como plataforma realimentadora desse e de outros comportamentos criminosos. O ódio é uma matéria-prima valiosa nas redes e constitui uma amálgama que une e mesmeriza um terço da população.
Mas há algumas instituições que servem como motores do acirramento dos preconceitos. Os partidos políticos, pelo que se pode depreender do pleito deste ano, resistem fortemente aos novos tempos.
A legislação eleitoral impôs cotas étnicas e de gênero para assegurar um mínimo de participação de pretos e mulheres. Porém, a burla a essas regras, e a desfaçatez com que ela é tratada, acabam por amplificar ainda mais o problema.
Em agosto passado, o Congresso aprovou, com o beneplácito de quase todos os partidos (inclusive do campo progressista), uma anistia para os partidos que a Lei 9504/19 tentou proteger. Foi um vexame do qual se salvaram apenas o PSOL e o Partido Novo.
Mas os partidos não se dedicam apenas a investidas de grande repercussão institucional a favor da manutenção do status quo. A leitura de alguns recortes estatísticos desta eleição mostra que eles são poderosas engrenagens de retroalimentação dos vícios ancestrais.
As máquinas de eleger brancos
De acordo com o Censo 2022 do IBGE, os não brancos (pretos, pardos, amarelos e indígenas) representam 56,5% da população brasileira. Os brancos são 43,5%. Dos 29 partidos que apresentaram candidatos neste 2024, 16 ficaram muito distantes desses percentuais.
Os 10 primeiros colocados no ranking da branquitude são siglas de direita: PL, Novo, Progressistas, MDB, PSDB, PSD, Podemos, União Brasil, Cidadania e Republicanos.
O Partido Liberal foi a agremiação que mais lançou candidaturas brancas. De acordo com os registros do TSE, eles ocuparam 56,9% das vagas oferecidas pelo partido.
Os não brancos somaram 42,9% (a soma dos percentuais não fecha 100% porque há registros de candidatos sem informação étnica).
Observe que, ao final do pleito, 70,4% dos candidatos eleitos pelo PL foram os que se declararam brancos. Os não brancos representaram menos de 30% dos que obtiveram mandato.
O mesmo fenômeno ocorreu nos 12 partidos que encabeçam o ranking das legendas hegemonicamente brancas.
Na outra ponta dessa relação, os partidos que mais apresentaram candidaturas não brancas foram, pela ordem, o PCB, Avante, PMB, Rede, Solidariedade, PT, PV, Agir, Democracia Cristã e Mobilização Nacional.
Apenas a título de exemplo, o Partido Comunista Brasileiro, que mais cedeu legenda para as minorias (72% das vagas), elegeu 70% de negros, pardos, indígenas e amarelos.
Em seguida, surgem o Avante e o PMB, que também conseguiram manter paridade entre o percentual étnico de candidatos apresentados e a proporção de eleitos. Porém, da quarta à vigésima quinta colocação, todos os demais partidos elegeram um percentual de brancos maior do que o de candidaturas brancas apresentadas.
Gênero: o mesmo de sempre
A história recente mostra com clareza que a maior parte das agremiações políticas não passa de autênticos “clubes do Bolinha”.
Na eleição de 2018, por exemplo, o PSL, que depois se fundiu ao DEM no União Brasil, criou candidaturas fantasmas para se apropriar da fração do Fundo Eleitoral destinada à cota feminina.
O escândalo foi enorme, mas até hoje não resultou em qualquer tipo de punição. Marcelo Álvaro Antônio, que foi ministro do Turismo de Bolsonaro e presidia o PSL, chegou a ser indiciado, mas conseguiu um novo mandato de deputado federal em 2022 pelo PL — e aí, vida que segue!
A leitura atenta dos registros de candidatura do TSE revela que o machismo ainda atua fortemente nos partidos políticos.
Dez dos onze partidos que menos destinaram vagas às mulheres são de direita: PL, PMN, Progressistas, PSD, MDB, Republicanos, PRD, DC, Avante e União Brasil, nesta ordem.
Na outra ponta do ranking, UP, PCdoB, PSOL, PSTU e PV foram os partidos que mais abriram espaço para as mulheres. Elas ocuparam entre 39% e 54% das vagas oferecidas nas convenções.
Quando se toma o perfil das candidaturas vitoriosas, apenas o PSOL conseguiu eleger proporcionalmente mais mulheres (47,6%) do que o percentual de candidaturas femininas cedidas (40,48%).
Em todas as demais agremiações, o desempenho das candidaturas femininas foi pífio, se comparado à proporção de mulheres candidatas.
Os piores resultados foram os do Agir, PMN e PRTB, nos quais as mulheres eleitas representaram entre 12% e 13% das candidaturas bem-sucedidas.
Se ser mulher no contexto partidário já não é fácil, imagine ser mulher e preta. Das 83.492 mulheres que se declararam pretas e disputaram eleição, apenas 5.106 conseguiram se eleger. Isso corresponde a 6,11%.
Entre as candidatas declaradas brancas (74.573), foram eleitas 7.315. O percentual de candidaturas vitoriosas foi de 9,81%.
Desses recortes surgem duas perguntas: por que alguns poucos partidos conseguem manter a representatividade étnica e outros muitos não conseguem? E por que as mulheres são tão malsucedidas nas campanhas eleitorais?
São perguntas aparentemente simples, mas que só terão resposta quando a Sociologia Política se debruçar sobre as razões que ainda levam a essas distorções.
É lícito supor que há fatores estruturais atuando por trás desse descompasso. Para quem busca entender a resiliência dos preconceitos em pleno século 21, há algumas evidentes suspeitas imediatas: ou os partidos investem menos, se empenham menos em candidaturas que representam minorias, ou o eleitorado é estruturalmente racista e misógino.
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