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Chico Alves

Jornalista, por duas vezes ganhou o Prêmio Embratel de Jornalismo e foi menção honrosa no Prêmio Vladimir Herzog. Foi editor-assistente na revista ISTOÉ e editor-chefe do jornal O DIA. É co-autor do livro 'Paraíso Armado', sobre a crise na Segurança Pública no Rio, em parceria com Aziz Filho. Atualmente é editor-chefe do site ICL Notícias.

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Mãe Beata e o Baobá – viver à sombra!

Há pessoas que não somente passam em nossas vidas, elas se mantêm presentes eternamente
01/02/2024 | 20h03

Há pessoas que não somente passam em nossas vidas, elas se mantêm presentes eternamente como as fases das estações que sempre irão retornar.

Esse é o caso de Mãe Beata, uma mulher Baobá, que se personifica como uma grande Baobá que irá passar por todas as estações dignamente e altiva, observando as mudanças e o desenrolar das nossas vidas.

Tem raízes profundas, galhos frondosos e sombras frescas. Serve de abrigamento para os viajantes que irão em suas paragens buscar o tronco grosso para nos recostar e poder contar histórias, trazer memórias de nossas viagens terrenas e espirituais.

Isso é o que eu sinto quando lembro desta Mãe Baobá, que me incentiva e impulsiona a viajar na vastidão de sua copa frondosa.

Mulher de uma estatura baixa e um saber altíssimo, que suplantava seu corpo minúsculo e atarracado.

Como podia caber tantos saberes e força motriz ancestral naquela mulher?

Mulher negra, nordestina, mãe de quatro filhos biológicos e uma soma incontável de filhos e filhas que ela se orgulhava em dizer que “todos foram paridos por minha mão preta, filhos do útero de Iemanjá”.

Uma vez, ela cismou que queria plantar um pé de Baobá em sua casa de Candomblé, ficamos todos espantados e nos perguntando onde iria ser plantada a árvore símbolo do continente africano, pois vegetação das dimensões do Baobá naquele espaço seria muito complicado.

Ponderamos com ela, explicando que depois seria um problema aquela árvore com suas raízes profundas, troncos grossos e galhos enormes. Poderia vir a prejudicar as estruturas da casa de candomblé.

Ela prontamente nos respondeu “não estarei aqui pra ver, e muitos de vocês também não, mas seus filhos, netos e bisnetos serão beneficiadas com sua sombra e frutos”.

O Baobá foi plantado na frente do terreiro. Hoje eu estou com sessenta anos e a cada vez que eu saio pelo portão para saudar o dia e os caminhos pelos quais Exu irá me levar, sou saudado pelo Baobá Beata com suas sombras e imponência da matriarca que não nos deixou,  e se faz presente naquela árvore.

Ela, Baobá Beata, não me incomoda, nem acredito que irei ser incomodado durante minha estadia neste plano físico. Vou deixar que os meus predecessores possam usufruir de sua sombra, como eu tenho o imenso prazer e honra de estar sentado à sua sombra, me sentido amparado por esta matriarca, Baobá de dignidade e continuidade em nós.

Deixemos viver o Baobá em cada mente e corpo. Semente Baobá Beata!

 

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Mãe Beata de Yemonjá, nome pelo qual foi conhecida Beatriz Moreira Costa, nasceu em Salvador, BA, em 20 de janeiro de 1931, radicando-se em Miguel Couto, Nova Iguaçu, RJ. Neta de portugueses e africanos escravizados e conduzidos ao Brasil, passou a sua infância nos arrabaldes de Cachoeira do Paraguassu, Bahia, cercada pela presença de mãe Afalá e por outras mulheres de origem africana, essencialmente, pela avó paterna, mulher que, segundo Mãe Beata em seus relatos, “tratava de todos no engenho com suas ervas e mezinhas”. (Caroço de Dendê, p. 12).

Ialorixá do Ilê Omi oju Aro — Casa das Águas dos Olhos de Oxossi — Mãe Beata, por volta de 1980, transformou-se em umas das mais celebradas personalidades do candomblé do Rio de Janeiro. Foi uma das integrantes do ICAPRA, Instituto Cultural de Apoio e Pesquisa das Religiões Afros, o qual visa a difusão das heranças e tradições dos povos brasileiros de origem africana, centrando-se, especialmente, na transmissão religiosa.

Em toda a sua existência, Mãe Beata sempre batalhou por justiça social, realizou trabalhos com soropositivos e doentes de AIDS, foi também conselheira do MIR (Movimento Inter-Religioso), membro do Unipax (que luta pela paz), integrante do Conselho Estadual dos Direitos da Mulher, tendo sido também presidente de honra da ONG CRIOLA.

No ano de 1997, lançou o livro Caroço de Dendê: a sabedoria dos terreiros, pela Pallas editora e em 2004 Histórias que a minha avó contava, pela Terceira Margem. Hábil contadora de histórias, buscou sempre resguardar em seus relatos as tradições e heranças da cultura africana, que passou a conhecer desde a infância cercada por descendentes de ex-escravos.

Morreu em 27 de maio de 2017.

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