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Jorge Mizael

Cientista político, doutorando pelo Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE), com foco em comportamento político e estudos sobre mudanças constitucionais. Fundador da Metapolítica, consultoria premiada no Oscar da Comunicação Política Mundial em 2020 pela The Washington Academy of Political Arts Sciences. Indicado, em 2021, como Consultor Político Revelação pela mesma instituição. Colunista do portal ICL Notícias, onde analisa questões políticas e institucionais com ênfase em governança e a relação entre o Legislativo e o Executivo.

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Mais cadeiras, menos voz: a reforma que diminui o cidadão

Entenda como aumento do número de deputados enfraquece o peso do seu voto e mantém privilégios
12/05/2025 | 05h00
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A representação política é a pedra angular de qualquer sistema democrático. Ela garante que a voz dos cidadãos seja ouvida e que suas vontades se traduzam em políticas públicas. No Brasil, a Câmara dos Deputados é o órgão que personifica essa representação em nível federal. A Constituição de 1988 estabelece que o número de deputados por estado e pelo Distrito Federal deve ser proporcional à sua população, com ajustes para garantir um mínimo de 8 e um máximo de 70 deputados por unidade federativa. No entanto, a dinâmica populacional do país, com suas intensas migrações internas e taxas de crescimento desiguais, exige revisões periódicas dessa representação para manter sua legitimidade e eficácia.

Recentemente, o debate sobre a representação na Câmara dos Deputados foi reacendido pela decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), que determinou ao Congresso Nacional a atualização do número de deputados por estado com base nos dados do Censo Demográfico de 2022. Essa decisão impulsionou o debate de duas propostas principais: o Projeto de Lei Complementar (PLP) 148/23, que propunha uma redistribuição das 513 cadeiras existentes, e o PLP 177/2023, que aumentava o número total de deputados para 531. A aprovação deste último gerou controvérsia e levanta questões sobre a natureza da representação política no Brasil.

Embora a intenção de evitar perdas de representação para alguns estados possa ser compreensível do ponto de vista político, a solução adotada compromete princípios fundamentais da representação proporcional e da igualdade do voto.

O contexto: a decisão do STF e as propostas de recomposição da Câmara

A necessidade de readequar a representação dos estados na Câmara dos Deputados não é nova. A última atualização importante ocorreu em 1993, baseada em dados populacionais da época. Desde então, o Brasil passou por transformações demográficas profundas, com algumas regiões experimentando um crescimento populacional muito superior a outras. Essa defasagem resultou em um sistema onde o peso do voto de um cidadão varia consideravelmente dependendo do estado em que reside, ferindo o princípio da igualdade de representação.

Diante dessa distorção, o STF, em agosto de 2023, determinou que o Congresso Nacional aprovasse uma nova lei para ajustar a representação dos estados na Câmara dos Deputados, utilizando os dados do Censo Demográfico de 2022. O prazo estabelecido foi 30 de junho de 2025, sob pena de o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) fixar os números para as eleições de 2026 com base na legislação vigente.

Nesse contexto, surgiram duas propostas principais:

  1. PLP 148/23: Este projeto propunha uma redistribuição das 513 cadeiras existentes na Câmara dos Deputados, sem alterar o número total de parlamentares. A lógica era simples: estados que ganharam população em relação à média nacional aumentariam sua representação, enquanto aqueles que perderam ou tiveram crescimento menor diminuiriam suas bancadas. Essa abordagem seguia o espírito da legislação existente e buscava restabelecer a proporcionalidade entre população e representação.
  2. PLP 177/2023: Este texto, em vez de somente redistribuir as cadeiras existentes, aumentou o número total de deputados para 531. A justificativa principal foi evitar que estados perdessem representação, o que, segundo os defensores da proposta, poderia gerar instabilidade política e prejudicar a governabilidade.

Enquanto o PLP 148/23 propunha uma medida justa, o PLP 177/2023 foi uma manobra legislativa mascarada sob o discurso da estabilidade política.

A crítica ao PLP 177/2023 sob a ótica da teoria da representação

A aprovação do PLP 177/2023, em detrimento do PLP 148/23, levanta sérias preocupações do ponto de vista da teoria da representação política. A solução adotada compromete princípios fundamentais da democracia representativa.

1. Distorção do Princípio da Proporcionalidade:

Um dos pilares da representação política em sistemas democráticos é o princípio da proporcionalidade. Isso significa que a composição do parlamento deve refletir, da forma mais fiel possível, a distribuição da população ou do eleitorado. Ao aumentar o número de deputados para evitar que alguns estados percam cadeiras, o PLP 177/2023 distorce esse princípio. Estados com menor crescimento populacional ou mesmo com decréscimo populacional acabam mantendo uma representação desproporcional em relação a estados que tiveram um crescimento mais expressivo. Isso cria um desequilíbrio na representação, onde o voto de um cidadão em um estado menos populoso pode valer mais do que o voto de um cidadão em um estado mais populoso.

2. Comprometimento da igualdade do voto:

O princípio da igualdade do voto, também conhecido como “um homem, um voto” (ou, mais precisamente, “uma pessoa, um voto”), é fundamental para a legitimidade de um sistema democrático. Ele estabelece que cada voto deve ter o mesmo peso na determinação do resultado eleitoral. Ao manter artificialmente a representação de certos estados, mesmo que sua população não justifique, o PLP 177/2023 cria uma situação em que os votos dos cidadãos desses estados têm um peso maior do que os votos dos cidadãos de outros estados. Isso fere o princípio da igualdade e pode levar a um sentimento de injustiça e alienação política.

3. Primazia de interesses políticos sobre princípios democráticos:

A decisão de aumentar o número de deputados em vez de redistribuir as cadeiras existentes parece ter sido motivada mais por considerações políticas do que por um compromisso com os princípios da proporcionalidade do voto. A perda de cadeiras por parte de alguns estados certamente geraria descontentamento entre os políticos desses estados. No entanto, a busca por soluções que evitem o desgaste político não pode se sobrepor à necessidade de garantir uma representação justa e equitativa para todos os cidadãos.  Um jogo de soma positiva para os políticos, mas de soma negativa para a democracia.

Não por acaso, a condução política desse processo legislativo expõe um claro conflito de interesses. Dos últimos quatro presidentes da Câmara dos Deputados — Eduardo Cunha (RJ), Rodrigo Maia (RJ), Arthur Lira (AL) e Hugo Motta (PB) — todos são oriundos de estados que, segundo projeção do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap), perderiam cadeiras na Câmara caso o PLP 148/2023 fosse aprovado.

De acordo com essas estimativas, as novas projeções populacionais do Censo 2022 implicaria na perda de vagas justamente nos estados que historicamente concentram a presidência da Câmara: Rio de Janeiro (-4 cadeiras), Alagoas (-1), Paraíba (-2).

Enquanto isso, sete estados mais populosos ou em forte crescimento seriam beneficiados, ganhando maior representatividade: Santa Catarina (+4), Pará (+4), Amazonas (+2), Ceará (+1), Goiás (+1), Minas Gerais (+1) e Mato Grosso (+1).

E como se não bastasse a coincidência dos estados diretamente interessados no resultado, há mais um detalhe revelador: a autora do PLP 177/2023 é a deputada Dani Cunha (RJ), filha do ex-presidente da Câmara Eduardo Cunha, um dos interessados em manter a desproporcionalidade que favorece o seu estado.

Seria apenas uma coincidência ou a mais explícita confirmação de que, no Brasil, a política raramente age sem antes fazer suas próprias contas?

Esse cenário ajuda a compreender por que uma proposta mais justa foi derrotada. A manutenção da desproporcionalidade, neste caso, não é um acidente institucional, mas um projeto político deliberado, conduzido por lideranças diretamente interessadas em preservar sua influência desproporcional sobre o poder legislativo.

4. Impacto na Qualidade da Representação:

Aumentar o número de deputados não garante, por si só, uma melhoria na qualidade da representação. Pelo contrário, pode levar a um parlamento mais fragmentado e menos eficiente. Além disso, a manutenção de uma representação desproporcional pode levar a uma alocação ineficiente de recursos públicos, já que os estados com maior representação tendem a ter mais poder de barganha na negociação de verbas e investimentos.

5. Desafios à Legitimidade do Sistema Político:

Decisões como a aprovação do PLP 177/2023 podem minar a confiança da população no sistema político. Quando os cidadãos percebem que as regras do jogo são alteradas para beneficiar determinados grupos ou para evitar conflitos políticos, a legitimidade das instituições democráticas fica comprometida. Isso pode levar a um aumento da apatia política, do cinismo e da desconfiança em relação aos representantes eleitos.

Conclusão

A aprovação do PLP 177/2023, em detrimento de uma redistribuição mais justa das cadeiras existentes, é um retrato fiel de como a política brasileira funciona, além de um retrocesso institucional que insiste em proteger privilégios às custas da cidadania. Cada cadeira a mais na Câmara dos Deputados não representa mais vozes ou mais pluralidade. Representa, isso sim, mais recursos públicos consumidos e mais distância entre o cidadão e as decisões que moldam a sua vida.

Enquanto o país enfrenta desigualdades gritantes, a elite política continua desenhando as regras do jogo para preservar sua zona de conforto. E o resultado está diante de nós: votos que valem mais em alguns estados do que em outros, parlamentares que legislam para manter seus próprios interesses e um sistema que se afasta, cada vez mais, do povo que deveria representar.

Agora, o PLP 177/2023 segue para o Senado Federal, e cabe aos senadores uma decisão que será histórica: rejeitar essa proposta que carece de qualquer fundamentação técnica, teórica ou moral. Espera-se que o Senado não se curve diante de um projeto que afronta a ideia mais elementar de democracia — a igualdade do voto.

Por isso, a sociedade precisa compreender que as decisões do Legislativo não são apenas números ou estatísticas distantes. Elas afetam diretamente o acesso a políticas públicas, a distribuição de recursos e a qualidade da nossa democracia. Ignorar o que se decide no Congresso é permitir que poucos continuem decidindo por muitos.

O futuro da nossa representação política está sendo desenhado — e quem não acompanha o traçado, acaba sendo apagado da história.

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