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Manifestação de Bolsonaro não vai emparedar instituições, avalia João Cezar de Castro Rocha

"Se Bolsonaro for moderado, se Silas Malafaia não der os seus gritos histéricos ficará demonstrado que eles estão com medo", diz o professor
25/02/2024 | 08h14

Por Chico Alves

Professor de literatura comparada da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e pesquisador da semântica do bolsonarismo, João Cezar de Castro Rocha não acredita que a manifestação que Jair Bolsonaro e seus apoiadores promovem na avenida Paulista tenha  influência nos processos nos quais eles são acusados de vários crimes contra a democracia. Um deles apura as responsabilidades do ex-presidente e sua trupe em planejar e tentar executar um golpe de Estado.

Na entrevista a seguir, concedida ao ICL Notícias, Castro Rocha procura dar a dimensão real do fenômeno do bolsonarismo, que algumas vezes é subestimado e outras é superestimado pelo mundo político.

Apesar de duvidar que o ato vá mudar o curso das investigações, o pesquisador alerta: se ao fim dos processos ficarem provadas as culpas de cada um, é preciso que haja punição exemplar. Se isso não acontecer, o risco do movimento de extrema direita crescer e se tornar mais violento é real.

ICL Notícias – O sr. acha que o objetivo de Bolsonaro com essa manifestação é mostrar apoio popular para intimidar as autoridades, caso queiram prendê-lo?

João Cezar de Castro Rocha – Trata-se do mesmo modelo utilizado por Bolsonaro durante seus quatro anos de governo. É disso que se trata: tentar emparedar as instituições democráticas por meio da pressão popular. Mas não exatamente da pressão popular, e sim da manipulação da militância bolsonarista, que nestes momentos sempre é levada a um estágio máximo de radicalização.

Pela mídia extremista circula há uma, duas semanas uma série de mensagens de conteúdo altamente radicalizado. Nesse sentido, não é nada diferente do que ocorreu, por exemplo, em setembro de 2021, quando, no dia 7 de setembro, na avenida Paulista, Bolsonaro reuniu uma quantidade enorme de seguidores e fez o mais forte discurso contra o Supremo Tribunal Federal e em particular contra o ministro Alexandre de Moraes.

E assim como em setembro de 2021, em setembro de 2022 o resultado foi nulo. Isto é, Bolsonaro perdeu as eleições.

Nesse caso, o resultado será igualmente nulo: as instituições não serão emparedadas por número A, B ou C de pessoas na rua. Nesse sentido, esta manifestação é o autêntico tiro no pé. Porque ela vai deixar claro que o bolsonarismo é uma sucessão de profecias fracassadas e o Bolsonaro não está à altura da devoção dos seus fiéis. Porque, veja, Bolsonaro já pediu que as pessoas não apresentem faixas ofensivas ao STF, solicitou que nenhum dos oradores faça críticas contundentes a ministro algum. Nesse sentido, o Bolsonaro que tenta reunir uma multidão para emparedar as instituições, na verdade, é o primeiro, por assim dizer, a emparedar os próprios seguidores.

Professor João Cezar de Castro Rocha

Para o Silas Malafaia a manifestação implica um risco enorme, porque ele tentou usar a Associação Vitória em Cristo para financiamento e mobilização. Ele publicou um vídeo que é muito sintomático, em que, de forma curiosamente contida, ele afirma que nenhum ataque será feito a instituição democrática nenhuma.

Ou seja, o Bolsonaro e o Silas Malafaia se colocaram numa sinuca de bico. Se eles forem moderados e não fizerem ataques virulentos, decepcionarão todos que estão presentes. Se repetirem os ataques que eles faziam quando Bolsonaro estava no poder, vão todos para a prisão.

Que tipo de reação o sr. acredita que pode ocorrer em caso de prisão de Bolsonaro?

Na base bolsonarista do Congresso e do Senado, nas redes sociais onde a militância ainda hoje domina e nos canais bolsonaristas do WhatsApp e do Telegram será o verdadeiro apocalipse. A confirmação última da profecia e a redundância deliberada. Isto é,. Bolsonaro é perseguido por ser antissistema e a sua prisão seria a confirmação de que ele não pôde governar porque o “mecanismo” não permitiu. É visto assim nesse vocabulário peculiar da militância bolsonarista, que revela uma paisagem mental que não é a mesma na qual nós estamos.

Isso é muito importante. Essa manifestação, creio, poderá ser o início do fim do choque entre paisagens mentais conflitantes. De um lado, uma paisagem mental marcada pelo reconhecimento do princípio elementar de realidade, pela pluralidade, pela diversidade de opiniões, pela necessidade de negociação. De outro lado, uma paisagem mental bolsonarista, que tem uma vocação fundamentalista, no sentido de apenas aceitar que o mundo inteiro seja espelho das próprias convicções, e que por isso torna a política um empreendimento impossível.

O projeto de poder do bolsonarismo e da extrema-direita implica acabar com a política, acabar com o diálogo e com a capacidade de lidar com a diferença, que é sempre representada pelo outro. Ao mesmo tempo, do ponto de vista da paisagem mental em que vivemos, da realidade objetiva do Brasil, nada acontecerá.

Bolsonaro articulou um golpe, as provas são robustas, as investigações caminham de maneira normal, no prazo correto da investigação, sem nenhum açodamento, sem nenhum lavajatismo. Mas as conclusões parecem cada vez mais óbvias. Vamos dar a Bolsonaro e a todos os envolvidos a presunção de inocência porque defendemos de fato a democracia.

Precisamos esperar que a investigação se realize no curso natural, mas parece cada vez mais claro que tanto o ex-presidente quanto os seus principais assessores cometeram crime de atentado violento ao Estado Democrático de Direito, tentaram articular um golpe de Estado e formaram, portanto, uma organização criminosa e serão punidos, não por ressentimento ou por vingança, mas porque ou a democracia aprende a defender-se ou em menos de uma década não teremos um único regime democrático no mundo.

Neste sentido, o Brasil está dando uma lição fundamental para o mundo. Ao mesmo tempo em que a extrema direita enraizou-se no Brasil com uma intensidade inédita no século 21, também é no Brasil que a democracia está dando uma lição muito importante. É preciso recorrer aos instrumentos do Estado Democrático de Direito para defender a democracia.

A manifestação da Paulista não terá efeito algum. Isso é muito importante que fique claro, porque boa parte da manipulação e do sistema de desinformação bolsonarista consiste em tomar como realidades premissas que são falsas ou que não se sustentam. Isso só se realiza quando nós, de uma forma ou de outra, nos tornamos reféns da narrativa da extrema direita, quando permitimos que ela paute as nossas preocupações.

Esse caso é exemplar:a pauta correta não é qual será o resultado para o Brasil se por acaso Bolsonaro colocar um milhão de pessoas nas ruas. A pauta é outra: Bolsonaro já colocou milhões de pessoas nas ruas e ainda assim perdeu as eleições, tornou-se inelegível e muito provavelmente terminará na prisão. Libertarmo-nos da colonização do imaginário, realizada pela extrema direita, é uma virada de chave fundamental para que a democracia se reestabeleça de forma definitiva no Brasil.

Acredita que depois dessa manifestação os bolsonaristas vão voltar a radicalizar o discurso, já que depois do fracasso do 8/1 pareciam mais contidos?

Há dois cenários possíveis. No cenário que repetiria a trajetória histórica milenar de grupos apocalípticos, ou seja, esses grupos que anunciam o fim dos tempos para uma data precisa e quando a chega e nada ocorre a reação costuma sempre ser tripla.

De um lado, racionalizar o fracasso. De outro lado, adiar o cumprimento da profecia. Mas quando numa segunda vez a profecia novamente falha, esses grupos costumam se desagregar. Algo que é muito misterioso no bolsonarismo e na extrema direita contemporânea, e em boa medida se deve à capacidade de tornar simples erros em ilusões coletivas, é que o bolsonarismo tem colecionado desde o dia 30 de outubro de 2022 uma sucessão de profecias fracassadas. São as míticas,  para nós hoje divertidas, de que 72 horas após as quais Bolsonaro retornará e tudo será resolvido. As 772 horas já se passaram uma infinidade de vezes e a profecia sempre falha.

Os cenários possíveis para essa situação no sentido tradicional dos estudiosos e grupos milenaristas é a desagregação do grupo. Mas o Bolsonaro provou-se muito mais resistente do que se podia imaginar. Então, uma segunda possibilidade, um segundo cenário, que é bastante preocupante, é que se não arrefecer o ânimo e se as frustrações se acumularem pode haver a explosão localizada de violências.

Isso é o que no meu último livro eu denomino de terrorismo doméstico. O bolsonarismo teria conhecido uma metamorfose muito preocupante, da guerra cultural em primeiro lugar, como ele é conhecido em 2018, para um sentimento de caráter cada vez mais religioso e fundamentalista, o que ocorre durante a pandemia, até chegar ao terrorismo doméstico.

O que parece dominar as preocupações de bolsonaristas desde a articulação golpista de 12 e 24 de dezembro de 2022 e, sobretudo, desde o 8 de Janeiro. Mais um fracasso acumulado, mais uma profecia que não se cumpre e um dia isso pode explodir em violência, caracterizada pelo terrorismo doméstico

Qual é, na sua opinião, o caminho para livrar o Brasil desse radicalismo de extrema direita?

Não há uma resposta única porque não há um caminho único a ser seguido. Me parece que o o ideal seria combinar uma perspectiva dupla. A médio e longo prazo, a perspectiva deve ser generosa. Isto é, nós precisamos necessariamente criar pontes de diálogo com os bolsonaristas e sobretudo no meio dos bolsonaristas com os evangélicos que seguem apoiando o Bolsonaro. Nós precisamos escutá-los, nós precisamos sentar na mesma mesa, nós precisamos escutar-nos uns aos outros e nós precisamos chegar a uma ideia comum do que pode ser o Brasil como nação.

Isso a médio, longo prazo é indispensável. É preciso permitir que os que estão reféns do extremismo, e que acabaram vivendo em dissonância cognitiva coletiva profunda,  sejam capazes de sair desse estado mental, que lida com o puro delírio para retornar ao convívio social.

Não necessariamente pra que se torne de esquerda. Claro que não. Todos têm o direito de possuírem as suas próprias opções políticas e é assim que a democracia  existe. Mas a médio e longo prazo nós precisamos ajudá-los sair do extremismo e a abandonar a dissonância cognitiva coletiva.

Mas para que o médio e longo prazo sejam possíveis, no curto prazo, no horizonte imediato, uma perspectiva rigorosa é indispensável. Punição para todos os que articularam o golpe, desde os que invadiram a sede dos Três Poderes aos generais que apoiaram pela omissão mas também por ação direta a articulação golpista, aos coronéis das polícias militares estaduais, ao Silvinei Vasquez, que era então chefe da Polícia Rodoviária Federal, aos financiadores do golpe, a influencers, a jornalistas que fizeram tudo para insuflar a militância bolsonarista e são corresponsáveis por tê-los levado ao delírio do 8 de Janeiro.

Se não houver uma punição rigorosa no sentido da lei, não excessiva, mas vigorosa, de modo que fique claro que atentar contra o Estado Democrático de Direito é crime gravíssimo e que terá consequências, o Brasil repetirá o equívoco do período da redemocratização, quando nós cedemos à chantagem dos militares, à chantagem das Forças Armadas, e aceitamos uma Lei de Anistia, uma aberração jurídica cuja única finalidade era blindar militares e isentá-los os crimes que cometeram durante a ditadura.

A perspectiva tem que ser rigorosa, mas sempre com devido processo legal respeitado, com a presunção de inocência mantida com investigações sérias, sem pressa, sem açodamento, sem lavajatismo, sem espetacularização das investigações.

Mas se nós não tivermos de fato punição aos que tentaram dar o golpe de Estado, eles retornarão com muito mais força e talvez até antes de 2026. Portanto, é preciso a combinação da perspectiva rigorosa no curto prazo, com uma perspectiva generosa no médio e longo prazo.

Nesse contexto, qual importância da manifestação deste domingo?

Não sejamos reféns da narrativa da extrema direita bolsonarista. A manifestação não é importante. É claro que do ponto de vista político ela tem uma relevância, porque servirá de uma espécie de teste da força do Bolsonaro. Saber se ele mantém a sua militância mobilizada. Mas é só isso.

A manifestação só tem importância objetiva para o mundo da terra plana política do bolsonarismo. Para a realidade concreta do Brasil de fevereiro de 2024, a manifestação não tem, ou seja, não mudará em nada a inelegibilidade do Bolsonaro, não mudará em nada o curso das investigações sérias realizadas pela Polícia Federal, não mudará em nada o entendimento do Supremo Tribunal Federal da gravidade extrema dos atos que representaram uma tentativa violenta de abolição do Estado Democrático de Direito por meio de um golpe de Estado.

Tudo isso articulado pela criação de uma verdadeira organização criminosa no interior do Planalto, como a famosa reunião, cujo vídeo foi recentemente tornado público, revela. Portanto, é muito importante que compreendamos, muito importante mesmo, porque boa parte da estratégia da extrema direita consiste em transformar o erro em uma ilusão. Se isso ocorre e se a ilusão se tornar a coletiva, então o erro do primeiro momento torna-se realidade política objetiva.

Eu estou recorrendo à conceituação de Sigmund Freud, em “O Futuro de uma Ilusão”, ensaio publicado em 1927. Ele dizia que é preciso distinguir, erro de ilusão. Erro é um dado objetivo de um equívoco, que por isso mesmo pode ser objetivamente corrigido. Ilusão, dizia o Freud, é muito mais do que um erro. Não deixa de ser um equívoco, mas ele é um equívoco que sobretudo revela a projeção de um desejo. O Bolsonaro tornou-se poderoso politicamente por projetar o desejo de dezenas de milhões de brasileiros, o famoso retorno do recalcado.

A extrema direita triunfa quando a ilusão é tornada coletiva. Quando 58 milhões de pessoas abraçam uma ilusão cuja origem é um equívoco, mas é sobretudo a projeção de um desejo, então aquele equívoco é tornado ilusão. Agora é realidade política objetiva, porque tornou-se coletiva. E essa ilusão torna-se coletiva porque nós do campo progressista aceitamos os seus termos.

A manifestação importa para o próprio campo bolsonarista como uma demonstração de força ou de fraqueza do próprio Bolsonaro. Mas para a realidade política objetiva do Brasil essa manifestação não somente não tem importância como é um enorme tiro no pé, porque ela é realizada com uma série de pessoas que estão sendo investigadas por tentativa violenta de abolição do Estado Democrático de Direito. Quase certamente haverá faixas, cartazes e declarações que estarão muito próximas da tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito. É um tiro no pé.

Ao mesmo tempo, se Bolsonaro for moderado, se Silas Malafaia não der os seus gritos histéricos ficará demonstrado que eles estão com medo. E se demonstrarem publicamente o medo, revelarão que este medo tem uma causa, equivalerá a uma confissão pública, confissão de que eles de fato atentaram contra o Estado Democrático de Direito. Portanto, a única importância que a manifestação pode vir a ter para a realidade concreta na qual vivemos, não para o delírio típico da manipulação bolsonarista dos fatos objetivos, é que Silas Malafaia, Jair Bolsonaro, entre outros podem realizar uma confissão pública dos crimes que cometeram

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