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AI-5

Nenhuma sigla na história do Brasil provoca tanta repulsa. Decretado no dia 13 de dezembro de 1968, o Ato Institucional número 5 significou um novo autogolpe no interior do regime militar – não foi primeiro, não será o derradeiro. O AI-5 anunciou o princípio do momento mais sombrio da ditadura, marcado pelo uso sistemático da tortura e mesmo pela execução de adversários políticos e a ocultação de seus cadáveres. A suspensão do habeas corpus representou um autêntico passaporte para prisões arbitrárias, com a revogação dos mais elementares direitos civis, uma vez que qualquer cidadão podia ser preso e mantido incomunicado por um longo período de tempo, sem que seus captores tivessem de abrir um processo ou sequer um procedimento administrativo formal.

A justificativa do AI-5, aliás, parece ter sido mimetizada pelo atual discurso bolsonarista em sua tentativa de legitimar a tentativa de golpe de Estado.

Não exagero: veja por conta própria.

Você não concorda que a seguinte passagem poderia ter sido vociferada pelo ex-presidente ou pela sua aguerrida base parlamentar?

“(…) assegurasse autêntica ordem democrática, baseada na liberdade, no respeito à dignidade da pessoa humana, no combate à subversão e às ideologias contrárias às tradições de nosso povo, na luta contra a corrupção.”

“Autêntica” aqui quer dizer algo tão simples como brutal e que foi involuntariamente explicitado em célebre fala do último general-ditador, João Baptista Figueiredo. Ao anunciar a continuidade do processo de redemocratização, iniciado no governo do general-ditador Ernesto Geisel, o amante inveterado do hipismo deu um tremendo coice na ideia de democracia.

“Mas não tenha dúvida” – claro está, pois general-ditador existe para prender e arrebentar. Democracia, talvez; mas só se calçar coturno, falar grosso e não admitir oposição.

(Ainda estão aqui?)

Mais ou menos como acampar diante de quartéis e exigir uma intervenção militar que “assegurasse autêntica ordem democrática”. Os ecos da ditadura ressoam no bolsonarismo e também na militarização crescente da sociedade. Os últimos escândalos envolvendo a Polícia Militar de São Paulo (PM-SP) são apenas a ponta do iceberg que nunca tivemos coragem de enfrentar, qual seja, o fato de os crimes das Forças Armadas, durante a longa noite da ditadura, não terem sido punidos gerou um sentimento de impunidade que se expressa na violência excessiva, nos assassinatos sumários, nas violações flagrantes de direitos humanos da PM-SP. O ataque criminoso contra a jornalista Natuza Nery, realizado por um policial civil dentro de um supermercado (!), mostra a porosidade da truculência em todos os níveis e em todos os lugares.

(Impunidade: Caixa de Pandora do militarismo nos tristes trópicos.)

Vale evocar a frase atribuída ao vice-presidente civil do general-ditador Artur da Costa e Silva. O único que se recusou a assinar o AI-5, Pedro Aleixo teria justificado seu voto contrário reafirmando sua confiança no presidente, mas ressalvando que temia pelo efeito do AI-5 no comportamento do guarda da esquina. Em outras palavras, a impunidade de generais e de torturadores por seus crimes durante a ditadura criou uma cultura extremista entre as forças de segurança.

(Na “Carta sobre o Stalinismo”, György Lukács desenvolveu raciocínio similar. O resultado mais nefasto do totalitarismo é seu efeito de contágio no conjunto da sociedade.)

Retornar ao texto do AI-5 revela a origem das mazelas nossas de cada dia em pleno século XXI.

Em geral, na leitura do documento, destaca-se o artigo 10 que decreta draconianamente, “fica suspensa a garantia de habeas corpus”, e é compreensível que assim seja. Um dos mais respeitados instrumentos jurídicos, suas origens remontam ao século XIII inglês, na Magna Carta de 1215, ou de maneira mais precisa no “Habeas Corpus Act”, de 1679. O artigo 8 da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 consagra o instrumento como condição sine qua non para a plena dignidade da pessoa humana. Portanto, é como se no dia 13 de dezembro de 1968 o ordenamento jurídico brasileiro retrocedesse ao século XIII (!) e assumisse sem pudor algum o caráter ditatorial do regime.

Contudo, o artigo realmente decisivo, e que segue influente no militarismo brasileiro, é o muitas vezes negligenciado artigo 11.

Eis seu conteúdo assustador:

“Excluem-se de qualquer apreciação judicial todos os atos praticados de acordo com este Ato institucional e seus Atos Complementares, bem como os respectivos efeitos.”

A redação é cuidadosa e sua sombra ainda hoje compromete e fragiliza a democracia no Brasil. Todos os membros do governo Costa e Silva sabiam muito bem das consequências de um dispositivo legal que criava um campo tão vasto de ações que não seriam jamais sujeitas a “qualquer apreciação judicial”. É chocante a desfaçatez com que o reconheceram na reunião convocada para aprovação do AI-5.

A existência de um Superior Tribunal Militar (STM) é o paroxismo desse espírito de impunidade acima de tudo, corporativismo acima de todos. O caso recente dos oito militares que, no dia 18 de dezembro de 2024, tiveram suas penas reduzidas pelo duplo homicídio do músico Evaldo Santos e do catador de recicláveis Luciano Macedo, assassinados com 257 tiros, é terrível precisamente porque ele é a regra.

(Ave Clarice! O tiro de número 257 atravessa a sociedade brasileira inteira. Ainda estão aqui? Seguem impunes?)

E regra sem exceção alguma, como, aliás, é comprovado pela trajetória do capitão Jair Messias Bolsonaro, reconstruída com brilho por Luiz Maklouf Carvalho em seu importante livro, O cadete e o capitão. A vida de Jair Bolsonaro no quartel (2019). O relator do processo que acusava o, nas palavras de Ernesto Geisel, “mau militar” de ter arquitetado um atentado terrorista em instalações do Exército para forçar o aumento de soldo da tropa, considerou Bolsonaro culpado. Porém, o STM absolveu o capitão, que passou para a reserva e ingressou na política. O resto não é silêncio, tampouco história, mas tragédia, com aproximadamente 700 mil mortes.

Você me acompanha: tudo se passa como se o artigo 11 do AI-5 tivesse contagiado as Forças Armadas e as forças de segurança.

Não é tudo.

E se eu lhe disser que a obsessão com a impunidade levou os militares a retornar a 1824 em 1988?

(Na próxima coluna – mas não tenha dúvida – fratura exposta.)

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