E o golpe de 1964 sopra suas sessenta velas. Um sexagenário que nada tem de passado. Neste século 21 em que seis décadas já não são mais sinônimo de velhice, mas para muita gente o começo de outra etapa produtiva da existência, ele está ativo, à espreita, esperando uma brecha para voltar a vicejar numa sociedade construída em cima de traições, derrubadas e roubos. Roubo do poder, de terras, de vidas.
O 31 de março de 1964 é filho, neto e bisneto de outros movimentos violentos e sufocantes de tudo o que andar na contramão da sua avenida. A vereadora Marielle Franco, nascida em 1979, quando ele era um adolescente de 15 anos, ousou cruzar a via de seus herdeiros de métodos assassinos de eliminação de todo e qualquer desafeto. Pessoas que se acostumaram desde as capitanias hereditárias a dominar territórios inteiros e manipular as vidas que se movem nele.
Acontece que um assassinato brutal, arquitetado por aprendizes de carrascos de uma ditadura que forjou uma elite atrofiada e sedenta por lucro e dominação, precisa ser solucionado. A resposta à execução ocorrida em 14 de março de 2018, ainda que com uma sensação de que faltam peças no quebra-cabeças macabro, veio seis anos e 10 dias depois de uma agonia infinita para familiares, amigos, eleitores e eleitoras de Marielle.
Em um Domingo de Ramos foram presos os nomes ventilados pelas investigações e a mídia desde há muito tempo, porém o “plot twist” viria justamente das fileiras da polícia com grupos tão afeitos a métodos de tortura e encomendas de corpos tal e qual nos anos de chumbo. Um delegado traidor, espião, um “araponga” bem ao gosto do aniversariante de 31 de março.
Acabou, mas continua. No imaginário dos que acharam que não estavam incorrendo em um crime no dia oito de janeiro do ano passado e hoje enfrentam os horrores do sistema prisional brasileiro, o velho golpe é a solução para todos os problemas nacionais, coletivos e privados. São os que clamam por um golpe militar, que enxergam o assassinato da vereadora como “uma baixa de guerra”. A guerra contra um fantasma de comunismo inexistente, que irá supostamente surrupiar o apartamento de dois quartos num subúrbio qualquer, uma cobertura em algum ponto nobre ou impedir que milícias grilem terras para vende-las ilegalmente.
O assassinato de Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes apenas foi elucidado devido ao grito comovente e a insistência de uma coletividade que não se conformou com o Brasil que parece estar sempre na via contrária do necessário, ou seja, um país que esquece o que deveria lembrar e lembra do que deveria esquecer.
Como nação, poderíamos ter a dignidade de não apagar as vítimas do autoritarismo, da violência cotidiana naturalizada por ele, dos sofrimentos seculares, dos corpos que tombaram e tombam gritando por justiça. Seguiremos, pelo visto, no erro de não rememorar e por isto correndo o alto risco de repetir.
Como país poderíamos definitivamente sepultar esta mania de tentar mudar o rumo da história golpeando, deixar de lado o assassinato como método de eliminar opositores e abandonar a hipocrisia que se elege na democracia, mas que deseja se perpetuar na ditadura.
O ano de 1964 precisa acabar — o de 2018, também.
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