Quem acompanhou atento o noticiário do fim de semana no Brasil não deixou de ficar atordoado com duas das principais notícias que abalaram o país (e o mundo).
A primeira é a tragédia ambiental, climática (e sempre política) no Rio Grande do Sul, que já levou a quase 1 milhão de pessoas afetadas pelas cheias, a centenas de mortos e uma devastação estrutural como poucas vezes se viu num Estado inteiro.
O Rio Grande do Sul, em desespero, clama por um milagre e, evidentemente, por ações políticas para mitigar a dor de milhões de pessoas.
A outra notícia foi o show de encerramento da turnê da superstar Madonna, que reuniu uma multidão de mais de 1 milhão e meio de pessoas na praia de Copacabana, no Rio de Janeiro. Com o repertório adaptado ao cenário brasileiro, incluindo a “retomada” da bandeira nacional, Madonna deu o recado regado a atos de liberdade sexual que viralizaram em cadeia nacional.
A libertação sexual das mulheres, os direitos da comunidade LGBTQIA +, nomes da cultura e do ativismo político, em suma, os “leques” em uníssono mostraram que apesar dos novos “anos de chumbo” da era Bolsonaro, a comunidade resiste e aumenta.
Contudo, os algoritmos das mídias sociais pareciam de fato espelhar um país há muito dividido. Como curtir o show da Madonna (e qualquer outro show ou lazer) sem se sentir culpado ou de alguma maneira preocupado com o caos no Rio Grande?
Tal questão não é nova no Brasil, sabemos bem, uma vez que somos o país campeão de mortos da Covid, campeão em massacres e genocídios contra pretos e pardos, mulheres e indígenas, campeão nos deslizamentos de barragens e todo um leque de atrocidades que o Brasil esbanja desde, no mínimo, 1822.
Não cabe aqui julgamentos morais sobre o que vamos fazer com o “nosso tempo livre” para lazer ou o nosso compromisso em ajudar, até porque uma coisa não exclui necessariamente a outra, mas cabe lembrar o básico que une as duas notícias.
A forma do espetáculo-show da Madonna é a forma de sempre, a do Capital e suas metafísicas e nefastas hierarquias. Camarotes, empresas, bancos e afins provam isso. “O que interessa nesse mundo é ser VIP, o resto é conversa”, disse um amigo meu que estava no show, revoltado com as hierarquias entre os públicos. Mas para além disso, o que nos interessa aqui é unir as pontas.
A tragédia no Rio Grande do Sul também “cumpre” a função da farra do “Capital e suas orgias”. O neoliberalismo descarado do tucano Eduardo Leite, os cortes de verbas para emergências e defesa civil e a autorização da devastação do meio ambiente provam que no cortejo de hierarquias e maldades do Capital, a forma vale para todos os conteúdos. Seja na indústria cultural, seja nas altas instâncias das disputas políticas.
Não à toa, e talvez por isso, o Governador Eduardo Leite tenha anunciado em rede nacional que o Rio Grande precisará de um novo “Plano Marshall”. E é aí que temos que ir para além da plasticidade do uso do termo.

No inverno de 1947, a Europa toda vivia os efeitos nefastos da destruição causada pela II Guerra Mundial. Especificamente na Alemanha, o país mais destruído, o inverno faminto de 1947 levou milhares de pessoas às ruas para protestar contra a fome. Na fotografia acima, um homem segura um cartaz com as seguintes palavras de ordem: “Queremos carvão, queremos pão!” Fonte: Arquivos da República Alemã. Domínio Público.
Batizado de “Plano Marshall” em função de ter sido idealizado pelo então Secretário de Estado dos EUA, o General George Marshall, o “Plano de Recuperação Europeu” foi uma iniciativa americana assinada pelo Presidente Harry Truman (o mesmo que autorizou o lançamento das bombas atômicas sobre o Japão) e promulgada em abril de 1948 para fornecer ajuda financeira à Europa devastada pela Segunda Guerra Mundial (1939–1945).
O próprio George Marshall — então Chefe do Estado Maior das Forças Armadas dos EUA — viu com os próprios olhos a destruição causada principalmente pela Alemanha Nazista, que levou seu esforço de guerra até as últimas consequências, assim submetendo o continente europeu ao período mais sombrio de sua história.
Não bastasse o Holocausto contra os judeus e os mais de 70 milhões de mortos no mundo, a Segunda Guerra deixou em seu rastro a destruição da infraestrutura, o desabastecimento de alimentos e itens básicos, o sistema habitacional completamente destruído, fome estrutural e desesperança em todos os cantos do Velho Mundo.
Para “mitigar” os sofrimentos do “continente sombrio” e para garantir sua presença e hegemonia na Europa também ocupada pela União Soviética — que com seu Exército Vermelho derrotou os Nazistas — só os EUA, na fase de sua maior expansão militar, transferiram cerca de 13,3 bilhões de dólares (equivalente a mais ou menos 173 bilhões de dólares nos dias de hoje) em programas de recuperação econômica para os países da Europa Ocidental.
Grã-Bretanha, França (aliados de longa data) e Alemanha Ocidental ficaram com a maior fatia e se tornaram aliados imprescindíveis dos EUA no combate ao socialismo soviético durante praticamente o resto do século 20. Ao todo, até a década de 1960, o Plano Marshall e seus posteriores correlatos, transferiram quase 18 bilhões de dólares em ajuda econômica para a Europa Ocidental.
Os EUA também ofereceram ajuda à URSS de Stalin e aos países que iriam formar a “Cortina de Ferro”, mas por motivos óbvios, a “Guerra Fria” cuidou de separar as duas nações vencedoras da Guerra em blocos antagônicos.
Poderíamos dizer, sem medo de errar, que para além da reconstrução da Europa, os EUA criaram — a partir do Plano Marshall e também a partir da ocupação e reconstrução do Japão — uma hegemonia mundial sem paralelos ao longo da História.
Talvez agora compreendamos a gravidade do uso do termo “Plano Marshall” pelo governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite. Porém, atentemos para a seguinte questão: não existe nem nunca existiu Capitalismo sem o aporte de investimentos dos Estados/Governos.
Talvez o Governador tenha esquecido que defender o neoliberalismo o levou não apenas a cair nas inúmeras contradições agora apontadas pela imprensa, pelos pares e pelos adversários políticos.
A História do mundo nos últimos anos — em função da Pandemia de Covid-19 — nos deu a perspectiva mais óbvia. A de que investimentos em defesa civil, em cultura, Arte, habitação, Educação e preservação do meio ambiente são as “guerras” mais justas que deveríamos lutar.
Mas me parece que — considerando que o governador manja de História — o uso do termo “Plano Marshall” ainda tem mais uma camada, a das rusgas políticas do governador com o presidente.
O “Plano Marshall”, ao fim e ao cabo, acabou excluindo os adversários/inimigos políticos da ajuda econômica e política. Resta saber — além de ajudarmos primeiramente e urgentemente o Rio Grande e seu povo — como as imagens políticas do Governador Eduardo Leite e do Presidente Lula sairão dessa guerra.
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