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Por Luciana Oliver Barragán (Cidade do México)

Março foi para o México um mês repleto de acontecimentos importantes e, de certa forma, contraditórios. Fomos testemunhas da força de um povo inteiro frente às ameaças estadunidenses e observamos uma das maiores marchas pelo Dia Internacional da Mulher na capital. Nesse ambiente de resistência e luta popular, confrontamo-nos também com a dura realidade que assola o país há quase duas décadas: os desaparecidos.

No dia 5 de março, foi descoberto um suposto campo de treinamento e extermínio do crime organizado em uma fazenda no estado de Jalisco, no município de Teuchitlán.

No local as famílias que buscam seus desaparecidos encontraram fragmentos de ossos calcinados, 400 pares de sapatos, 400 peças de roupas, malas e documentos abandonados.

Em um vídeo transmitido ao vivo no Facebook, integrantes do coletivo ‘Guerreros Buscadores de Jalisco’ mostraram cada uma das roupas, ossos e sapatos encontrados. Foi devastador. A dor dessas famílias comoveu o país inteiro, gerando protestos a nível nacional e exigindo ao governo justiça e ações decisivas.

A narrativa esquizofrênica

No dia 20 de março, a Fiscalia Geral da República permitiu o acesso ao local para representantes da mídia e grupos de familiares de vítimas de desaparecimento. O que demonstraria a disposição da Fiscalia em atuar conjuntamente com a sociedade civil.

Diversas entidades, grupos organizados e profissionais de imprensa de diferentes regiões do país deslocaram-se até Teuchitlán, Jalisco. O jornalista Darwin Franco, especialista em direitos humanos, violência e desaparecimentos forçados, explicou que, ao chegarem ao local, as famílias não encontraram peritos trabalhando nem qualquer pessoa fornecendo informações sobre o processo. As famílias acusaram A Fiscalia Geral de “maquiar o horror e construir uma nova narrativa”.

A jornalista Alejandra Guillén González, que há oito anos pesquisa diversos casos de desaparecimento no estado de Jalisco, detalha que o recrutamento ocorre via plataformas digitais, com promessas de trabalho. As vítimas são então retidas e submetidas a centros clandestinos de treinamento violento e extermínio pelo CJNG.

Para Guillén, o caso de Teuchitlán integra um sistema complexo que demanda análise sistêmica.

“Estamos num momento delicado no manejo das informações”, alerta Guillén. E ela tem razão: atualmente, no México, vive-se uma narrativa esquizofrênica sobre o assunto.

No cenário político, a oposição tem utilizado a dor das famílias de desaparecidos para desestabilizar o governo Sheinbaum. A mesma direita que entregou o país aos cartéis a partir de 2006 agora instrumentaliza essa tragédia nacional para atacar a presidenta. A bancada oposicionista chegou a exigir a intervenção de uma instância internacional para investigar o caso de Teuchitlán — cenário que serviria de justificativa ideal para as reiteradas ameaças de intervenção no México feitas por Donald Trump.

A raiz da violência no México

O México registra atualmente mais de 116 mil pessoas desaparecidas, e segundo organizações da sociedade civil, estima-se que existam cerca de 90 mil corpos não identificados. Diferentemente de países sul-americanos, o México não viveu ditaduras que praticassem desaparecimentos forçados — o conflito atual está ligado ao crime organizado, ao narcotráfico e às redes de macrocriminalidade que dele derivam.

A partir de 2006, quando o governo conservador do presidente Felipe Calderón declarou guerra ao narcotráfico, o México mergulhou em uma espiral de violência incontrolável. Como explica o pesquisador Luis Daniel Vázquez, do Instituto de Pesquisas Jurídicas da UNAM (Universidade Nacional Autônoma do México), as redes de macrocriminalidade no país se estruturaram a partir de uma articulação perversa entre: os cartéis de drogas, o setor empresarial privado e a classe política.

Dessa forma, o que ocorre no país é um cenário de violência inovadora. Ultrapassa a questão da produção e distribuição de drogas infiltrando-se em todas as esferas da sociedade, por meio de redes transnacionais, nacionais e locais.

A dívida histórica

Apesar dos avanços econômicos e sociais dos governos progressistas de Claudia Sheinbaum e Andrés Manuel López Obrador, o acesso à justiça para as vítimas da violência segue pendente. A fazenda de treinamento e possivelmente de extermínio do ‘Cartel Jalisco Nueva Generación’ (CJNG) é um exemplo cruel dessa dívida.

Em resposta ao contexto grave de desaparecimentos, o governo mexicano propôs uma série de modificações na Lei Geral de População e na Lei Federal de Pessoas Desaparecidas. Na segunda-feira, 24 de março, a Conselheira Jurídica do Executivo Federal, Ernestina Godoy, anunciou a criação de uma Base Nacional de Inquéritos sobre Pessoas Desaparecidas. Nesta base, a Fiscalia Geral da República, assim como as fiscalias estaduais compartilharão os dados obtidos em suas atividades de busca.

A Conselheira Jurídica também anunciou a criação de um sistema nacional de intercâmbio de informações em tempo real entre autoridades federais, estaduais e particulares. Dessa forma, seria evitado o atraso existente entre o registro de uma denúncia de desaparecimento e o início das buscas.

Esta semana, três indivíduos foram presos. Com base no depoimento de um deles, o titular da Secretaria de Segurança e Proteção Cidadã (SSPC), Omar García Harfuch, revelou que Teuchitlán funcionava como centro de treinamento de milícias do Cartel Jalisco Nueva Generación. Além disso, aqueles que se opunham ao treinamento neste rancho ou tentavam escapar eram espancados, torturados e assassinados.

A presidenta Claudia Sheinbaum enfatizou veementemente que toda a verdade sobre o caso será apurada. “A verdade — não a verdade construída por alguém, mas a verdade real”, declarou.

É crucial compreender que este problema não se originou com os governos progressistas do partido MORENA. No entanto, a disposição política de Claudia Sheinbaum demonstra que é justamente a esta administração que os mexicanos devem cobrar respostas concretas na identificação de corpos, capacitação de promotores e punição efetiva aos responsáveis.

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