Plano de poder
No dia 21 de abril, no Rio de Janeiro, Michelle Bolsonaro fez uma fala mais breve do que o discurso feito em São Paulo — como a ex-primeira dama esclareceu, seu marido, o Jair, chamou sua atenção.
Na avenida Paulista, ela defendeu o postulado fundamentalista da subordinação da política à religião; na avenida Atlântica, ousou ao apresentar um detalhado plano de poder.
(Leitora por osmose de Gary North?)
É preciso afiar bem os ouvidos e identificar a radicalização da proposta. Hora de assistir ao primeiro vídeo.
Passo à transcrição da fala.
(Prontos para a revelação de uma distopia tropical?)
“É pelos valores, é pelos princípios — é pelo Reino de Deus estabelecido na terra. Porque antes de sermos cristãos, nós somos cidadãos e precisamos, nós precisamos nos posicionar e exigir nossos direitos”.
Em tese, não haveria nada a objetar, pois a cidadania foi colocada à frente da fé; portanto, o protagonismo voltou a ser concedido à pólis e não à igreja.
Seria uma correção de rumos em relação ao discurso da avenida Paulista e seu clamor inconstitucional pela primazia da religião no governo da República? Ou seria antes um recuo estratégico com vistas a uma estratégia de longo prazo?
A camisa usada por Michelle Bolsonaro esclarece a intenção. Na frente, lê-se:
“O BRASIL
é do Senhor
JESUS”
Na parte de trás, o complemento enfatiza a doutrina:
“Venha o teu
REINO
Seja feita a tua
VONTADE
Assim na terra
como no céu
—————-
Mateus 6:10″
Sem sutileza alguma, a disposição gráfica das letras sugere a equivalência que se busca, o preceito pelo qual se luta:
“BRASIL”
“JESUS”
Já na camisa do pastor Silas Malafaia a inscrição ostentava, de modo sintomático, quase obsceno, o outro lado da moeda:
“meu
partido
é o Brasil”
O poema de Carlos Drummond de Andrade, “Nosso tempo”, permite que se reconsidere os dias céleres que correm:
Esse é tempo de partido
De homens partidos
Sejamos justos: o pastor Silas não é um homem partido, indeciso, consciente de limites. Nada!
O político Malafaia é homem de partido único: o seu próprio. E se um fariseu lhe oferecesse uma moeda, não hesitaria, muito menos conheceria escrúpulos: sem gastar palavras, guardaria a oferenda no bolso recheado.
Ilusões encontradas
Não cabem ilusões perdidas: na visão do mundo de Michelle só cristãos devem ser cidadãos.
Mas, e se por acaso alguém distraído não se deu ao trabalho de ler a sua camisa? O começo da breve pregação teria sido suficiente.
As palavras reiteram os dizeres da camisa-comício.
“Embarcamos para o Rio para estarmos juntos com vocês nessa manhã memorável; aonde nós queremos dizer que o Brasil é do Senhor Jesus. Aonde nós queremos passar a mensagem para homens e mulheres de bem que querem lutar por um país melhor para os seus filhos e os seus netos. Há esperança sim, há esperança de dias melhores para o nosso povo.”
Nos instantes finais, Michelle levanta uma das mãos para os céus e arrisca pequenos saltos no trio elétrico-tribuna-púlpito. O gesto é incontroverso e alude às línguas de fogo, recebidas pelos discípulos a fim de evangelizar outras nações.
A coreografia bem ensaiada pretende sugerir que naquele momento o Espírito Santo se manifesta; ora, “o Brasil é do Senhor Jesus”. Uma passagem célebre dos Atos dos Apóstolos ilumina o que está em jogo, num dos episódios mais representados na pintura ocidental.
“Quando chegou o dia de Pentecostes, estavam todos reunidos. De repente, veio do céu um ruído, como de vento de furacão, que encheu toda a casa onde se alojavam. Apareceram línguas como de fogo, repartidas e pausadas sobre cada um deles. Encheram-se todos do Espírito Santo, e começaram a falar línguas estrangeiras, conforme o Espírito lhes permitia expressar-se.” [1]
Torre de Babel às avessas, as línguas de fogo forjam uma linguagem sobrenatural e supra-humana, como se a teoria da ação comunicativa de Jürgen Habermas ganhasse contornos divinos e a fluência dominasse um universo de diálogos sem ruídos de qualquer espécie.
A interpretação da passagem não é pacífica, mas este não é o espaço para discutir querelas hermenêuticas. Na sequência, indivíduos oriundos de diversos países, atraídos pelo acontecimento, ouvem “os apóstolos falando no próprio idioma deles”. O espanto é grande, pois se perguntam:
“Não são todos galileus os que falam? Como então os ouvimos cada um em nossa língua nativa? Partos, medos, elamitas, habitantes da Mesopotâmia, da Judeia e Capadócia, Ponto e Ásia, Frígia e Panfília, Egito e distritos da Líbia junto a Cirene, romanos residentes, judeus e prosélitos, cretenses e árabes: todos os ouvimos contar em nossas línguas as maravilhas de Deus.” [2]
Poucos apreenderam o misticismo desse instante com a força de El Greco na tela “O Pentecostes”, que pode ser apreciada no Museu do Prado.
No alto da tela, o Espírito Santo preside a cena e as línguas de fogo descem em direção aos discípulos, pairando sobre suas cabeças. Todos olham maravilhados para o alto, evidenciando a atmosfera divina do sucesso.
O dom é recebido em êxtase e o compromisso evangelizador implicado na dádiva é assumido imediatamente e com total devoção, como sugerem os dois homens no centro da tela, cuja entrega plena à missão é notavelmente traduzida em sua linguagem corporal.
É bem conhecida a importância do dom das línguas para a experiência religiosa das igrejas pentecostais e neopentecostais. Nessa interpretação, o “falar em línguas” é uma manifestação inequívoca do Espírito Santo.
Tal hermenêutica tornou-se conspícua no campo político por ocasião da sabatina no Senado do ministro André Mendonça. Michelle Bolsonaro celebrou sua confirmação com entusiasmo.
Além dos saltos costumeiros, ela começou a falar em línguas e concluiu com um agradecimento emocionado: “Oh Deus, Deus, você é um Deus de promessas, Senhor”. Tal explosão de religiosidade teve lugar na indicação de um ministro para o Supremo Tribunal Federal, ou seja, o Poder-guardião da Constituição, que em seu artigo 19 consagra o caráter laico do Estado brasileiro.
Você se recorda da cena?
Ocupar espaços
A ocupação de espaços em esferas outras que não a exclusivamente religiosa é a tática definidora da Teologia do Domínio, cuja estratégia ambiciona nada menos do que tomar o poder político. Objetivo meridianamente exposto em ensaio-chave de Gary North. O discurso de Michelle inscreve-se na mesma lógica:
“Portanto, sejamos diretos quanto a isso: devemos usar a doutrina da liberdade religiosa para conquistar a independência das escolas cristãs até prepararmos uma geração de pessoas que compreendam que não existe neutralidade religiosa, lei neutra, educação neutra e governo civil neutro.
Em seguida, elas se ocuparão com a construção de uma ordem social, política e religiosa baseada na Bíblia que finalmente negará a liberdade religiosa dos inimigos de Deus. O assassinato, o aborto e a pornografia serão ilegais.
A lei de Deus será imposta. Isso levará tempo. Uma religião minoritária não pode fazer isso. A teocracia deve emanar do coração da maioria dos cidadãos, assim como a educação obrigatória só foi implantada depois que a maioria das pessoas colocou seus filhos em algum tipo de escola.” [3]
Recuperou o fôlego? E se eu lhe disser que essa postura depende de uma interpretação literalista do Gênesis? [4] Não é surpreendente tanto a explicitude desinibida da confissão quanto a similaridade com o plano de poder exposto por Michelle Bolsonaro? Veja o artigo por si mesmo:
Essa é a famosa estratégia dos dois passos defendida por Gary North e adotada pelos partidários da Teologia do Domínio. A camisa do pastor Silas Malafaia deveria sofrer uma emenda:
“meu
partido
é o Poder”
Como se desenrola a estratégia? No primeiro momento, lança-se mão da liberdade religiosa assegurada por governos democráticos (no Brasil, garantida pelo artigo 5 da Constituição) para conquistar o maior número possível de fiéis.
No segundo instante, quando os adeptos tornam-se maioria do eleitorado, ou pelo menos representam uma força política incontornável, capaz de decidir eleições majoritárias, é chegada a hora de influenciar ativamente na definição de políticas públicas, a fim de capturar as instituições do Estado.
Algum problema? Claro que não! Afinal, antes de “sermos cristãos, nós somos cidadãos”.
(Paro por aqui a análise do texto de Gary North. Não se indisponha comigo: a próxima coluna será inteiramente dedicada à dissecação do artigo.)
Podemos agora compreender o sentido da radicalização proposta por Michelle Bolsonaro; trata-se da retomada em todos os planos do movimento de disputa das vagas nos conselhos tutelares, que empolgou a maior parte dos líderes evangélicos, isto é, dos pastores que converteram o púlpito em tribuna eleitoreira e o altar em simulacro de urna. Vale a pena prestar atenção na manipulação política da retórica evangélica.
Escutemos com calma o projeto:
“Que o amor de Deus esteja presente em cada lar. Mulheres, sejam fortes e corajosas. Uma mulher sábia, ela edifica a sua casa, edifica o seu bairro, o seu município, o seu estado. Mas uma mulher… Mulheres sábias edificam uma nação. E essa é a mensagem que queremos passar para vocês”.
Ao se referir às mulheres sábias, novos saltos, agora mais enérgicos. Entende-se bem a razão: da casa à nação, lugares os mais diversos devem ser conquistados; dos conselhos tutelares ao Supremo Tribunal Federal; do governo de estados ao retorno profetizado ao Palácio do Planalto.
Num caso clássico de ato falho freudiano, a ex-primeira dama disse “Mas uma mulher…”, porém, raciocinando rapidamente, corrigiu-se a tempo, “mulheres sábias”.
Mantida a referência no singular, qual seria “a mulher sábia que edificaria a nação”? No fecho de ferro do discurso, Michelle promete que algo sobrenatural está prestes a acontecer e invoca Lucas 12:2. Consultemos a passagem:
“Não há nada escondido que não se descubra, nada oculto que não se divulgue”. [5]
Pois é: vem à superfície o projeto político autoritário, em busca da testosterona perdida, e fundamentalista, na afirmação de um ideal teonomista. Projeto construído a partir da manipulação perversa do repertório bíblico e do emprego malicioso da retórica evangélica.
A performance de Michelle Bolsonaro tudo desvela e tudo divulga.
A ameaça é grave.
Na próxima coluna, ao esmiuçar a perspectiva de Gary North, definirei com maior precisão a Teologia do Domínio.
(Você tem uma semana para se refazer do susto e abrir os olhos.)
[1] Atos dos Apóstolos 2:1-4. Bíblia do Peregrino. Luís Alonso Schökel (organização e notas). São Paulo: Editora Paulus, 2a edição, 2006, p. 2.627.
[2] Primeira citação, Atos dos Apóstolos 2:6; segundo trecho, Atos dos Apóstolos 2:7-11. Op. cit., p. 2628.
[3] Gary North. “The Intellectual Schizophrenia of the New Christian Right”. In: James B Jordan. The Failure of the American Baptist Culture. Christianity and Civilization. N° 1, Spring 1982. Geneva Divinity School, p. 25. Tradução de José Luiz Rangel.
[4] Espere a próxima coluna, mas adianto que se trata de Gênesis 1:28, especialmente do trecho: “– Crescei, multiplicai-vos, enchei a terra e submetei-a; dominai (…)”. Bíblia do Peregrino. Op. cit., p. 17.
[5] Lucas 12:2. Bíblia do Peregrino. Op. cit., p. 2498.
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