Por Cleber Lourenço
Mais de dois terços dos réus denunciados pelo Supremo Tribunal Federal (STF) por envolvimento na tentativa de golpe que visava manter Jair Bolsonaro no poder são militares. Ao todo, 21 dos 31 nomes com denúncia aceita pelo STF possuem vínculo com o Exército ou com a Marinha, incluindo generais da reserva e oficiais da ativa que participaram da cadeia de comando durante o governo anterior.
Entre eles estão figuras de alto escalão, como os generais da reserva Augusto Heleno e Walter Braga Netto, e o então comandante do Exército e posteriormente ministro da Defesa Paulo Sérgio Nogueira, além do tenente-coronel Mauro Cid, que chefiava o gabinete pessoal de Bolsonaro.
A presença de tantos oficiais de alta patente revela não apenas a capilaridade do plano golpista, mas também o papel estrutural das Forças Armadas no processo. O envolvimento de diferentes patentes — do subtenente ao general — evidencia uma articulação que não se restringe à cúpula, mas atinge setores operacionais e intermediários das forças.
Esse envolvimento reiterado com projetos autoritários não é novo na história do país. Desde a proclamação da República, em 1889, as Forças Armadas brasileiras têm um histórico de intervenções políticas, com destaque para a ditadura militar de 1964 a 1985, o Estado Novo de Getúlio Vargas em 1937 e o movimento tenentista nos anos 1920. Mesmo durante períodos democráticos, houve constantes ameaças veladas de ruptura institucional, como em 1954, na crise que antecedeu o suicídio de Vargas, e em 1961, com a tentativa de barrar a posse de João Goulart.

Militares do entorno de Bolsonaro dominam a relação de indiciados pela PF em relatório sobre tentativa de golpe no país (Foto: Marcos Corrêa/PR)
A cada geração, uma parcela da oficialidade se mostra disposta a romper a legalidade em nome de interpretações subjetivas de “salvação da pátria”. Essa mentalidade é reforçada por uma cultura interna que frequentemente trata a Constituição como um instrumento secundário diante de valores supostamente superiores, como a ordem, a hierarquia e a moralidade — todos interpretados sob ótica castrense.
Brasil ‘real’ x Brasil ‘da caserna’
Diversos analistas apontam que esse comportamento também decorre de uma formação deficiente, marcada por lacunas democráticas e por uma visão distorcida sobre o papel institucional das Forças Armadas.
Em suas academias, cadetes são treinados a enxergar política como sinônimo de corrupção, e governos civis como adversários. Matérias como direito constitucional, direitos humanos e história política contemporânea raramente ganham protagonismo nos currículos, o que reforça a lógica da separação entre o “Brasil real” e o “Brasil da caserna”.
Além disso, há pouca ou nenhuma responsabilização disciplinar interna por condutas públicas de caráter político-partidário, o que estimula a reincidência de atos de insubordinação velada. Episódios como o manifesto de generais contra a Comissão da Verdade, o uso eleitoral das redes sociais por oficiais da ativa e da reserva, e a omissão de comandos militares frente a declarações golpistas, são sintomas dessa permissividade doutrinária.
No caso dos réus do STF, muitos dos militares envolvidos passaram pelas principais escolas de formação da instituição, como a Aman (Academia Militar das Agulhas Negras), o IME (Instituto Militar de Engenharia) ou a Escola de Comando e Estado-Maior do Exército. Mesmo com altos níveis de formação técnica, muitos demonstraram baixa compreensão sobre o funcionamento das instituições democráticas e sobre os limites constitucionais de suas funções. O abismo entre a excelência operacional e o despreparo cívico é um dos traços centrais da crise militar brasileira.
Veja a lista dos 21 militares denunciados no STF
Almir Garnier Santos – almirante (Marinha)
Augusto Heleno – general da reserva (Exército)
Paulo Sérgio Nogueira – general (Exército)
Walter Braga Netto – general da reserva (Exército)
Mário Fernandes – general (Exército)
Estevam Cals Theophilo Gaspar De Oliveira – general da reserva (Exército)
Bernardo Romão Correa Netto – coronel (Exército)
Fabrício Moreira de Bastos – coronel (Exército)
Márcio Nunes de Resende Júnior – coronel (Exército)
Reginaldo Vieira de Abreu – coronel (Exército)
Ronald Ferreira de Araújo Júnior – tenente-coronel (Exército)
Sérgio Ricardo Cavaliere de Medeiros – tenente-coronel (Exército)
Rafael Martins de Oliveira – tenente-coronel (Exército)
Rodrigo Bezerra de Azevedo – tenente-coronel (Exército)
Hélio Ferreira Lima – tenente-coronel (Exército)
Guilherme Marques de Almeida – tenente-coronel (Exército)
Ângelo Martins Denicoli – major da reserva (Exército)
Ailton Gonçalves Moraes Barros – capitão reformado (Exército)
Giancarlo Gomes Rodrigues – subtenente (Exército)
Coronel Marcelo Costa Câmara – coronel (Exército)
Mauro Cid – tenente-coronel (Exército)
O julgamento no STF segue em andamento, e a composição majoritariamente militar entre os réus torna ainda mais urgente o debate sobre a necessidade de reforma na formação e doutrina das Forças Armadas brasileiras. A questão vai além da responsabilização individual: trata-se de enfrentar um padrão institucional que, historicamente, flerta com a tutela sobre a democracia e se recusa a submeter-se ao controle civil pleno, como exige a Constituição.
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