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Munique e a Europa provincial

A terrível verdade destes dias em Munique é esta: para os Estados Unidos a Europa não passa de um ator político com quem já não é preciso ter cuidados ou maneiras
17/02/2025 | 08h10
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Começa a ficar um pouco ridículo o esforço europeu de ignorar o significado das palavras americanas. Por mais que custe — e custa muito, sem dúvida — elas vão direitinhas ao coração da relação da Europa com os Estados Unidos: o artigo 5º do Tratado do Atlântico Norte. Depois da Groenlândia, depois do abandono da Ucrânia, depois das inaceitáveis intromissões de Elon Musk nas políticas internas dos países membros da União Europeia (recordemos que é um membro do governo americano, não apenas um bilionário excêntrico), depois das surpreendentes e amalucadas criticas feitas pelo vice-presidente americano contra as políticas europeias de “emigração” e de “supressão da liberdade de expressão”, alguém ainda acredita que os Estados Unidos virão em socorro de qualquer aliado europeu que seja atacado? Alguém acredita que “um ataque contra um (…) será considerado um ataque contra todos”? Não me parece.

Estes dias de Munique foram uma tragédia para o Ocidente. A delegação americana veio a Munique com o objetivo expresso de pôr em causa a arquitetura de segurança euro-atlântica: o artigo 5º já não é para levar a sério. E isto, sim, é assunto sério.

Dizem que o primeiro secretário-geral da OTAN, quando perguntado qual o propósito da organização, terá respondido que esta servia para manter os americanos “in”, os russos “out” e os alemães “down”. Esta bela história durou toda a Guerra Fria. Mas teve o seu tempo. Não, os americanos já não estão “in”, nem querem saber como estão os russos, nem como estão os alemães. O coração estratégico da batalha geopolítica do mundo já não se trava na Europa, mas no Sudoeste Asiático — já não é Berlim, mas Taiwan. Sejamos realistas: só a China importa, a Europa já não conta. Foi isto que os americanos vieram dizer a Munique.

A primeira fase do declínio deu-se no século 20, quando a Europa perdeu, depois da Segunda Guerra Mundial, o seu papel imperial de centro do mundo. Depois, apesar do papel secundário como parceiro júnior dos Estados Unidos, manteve ainda a condição de principal arena da disputa mundial. Berlim e o espaço europeu eram o eixo de confronto por onde passava a hegemonia mundial. Agora, passada a Guerra Fria (ou iniciada outra) já nem isso. Neste século a Europa deixou o estatuto “subordinado” para entrar no estatuto de “provincial” (uso dois conceitos do acadêmico Pierre Haroche). De região secundária passou a periférica no jogo político mundial. A terrível verdade destes dias em Munique é esta — para os Estados Unidos a Europa não passa de um ator político com quem já não é preciso ter cuidados ou maneiras. Alguém que podemos destratar sem consequências. O que os americanos fizeram em Munique ficará na nossa memória durante muito tempo. Não só romperam abruptamente com os seus aliados mas fizeram-no exatamente como os russos queriam — humilhando-os em sua própria casa. Disse Medvedev‎: “A Europa acabou. Ela é feia, fraca e inútil”. Tudo pareceu articulado entre ambos.

Alguns europeus, desiludidos e frustrados, procuram ainda a racionalidade desta atitude americana. Qualquer ideia de ordem que se esconda por detrás da insanidade do que foi dito em Munique nestes dias. Nada se encontra. Nada, que não seja o estado de transgressão permanente — o dito de hoje pior do que o de ontem. Hoje é o Canadá como 51.º estado americano, amanhã é a anexação do canal do Panamá, depois de amanhã o Golfo do México substituído na geografia imperial pelo Golfo da América. No palco político nada mais existe senão este lamentável e triste espetáculo que é omnipresente, que apaga a existência dos outros e que reduz o mundo a esta desgraça. Nada perdura.

Nada, a não ser o velho paradigma imperial — o velho, lamentável e medíocre exibicionismo do poder e da força: “Há um novo xerife na cidade” diz o vice-presidente americano. Não há dúvida. Mas, atenção: passada a surpresa, o mundo prepara-se para o combate. E vai haver combate. Vai haver combate. Não, a Europa não é feia, nem fraca, nem inútil — nem gosta que a tratem assim.

 

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