Quando a vitória de Donald Trump se confirmou na maioria dos colégios eleitorais, o mundo assistiu atônito ao retorno triunfal de um dos maiores falastrões da política contemporânea. Não cabe aqui nestas breves linhas mergulhar nos fenômenos que explicam o retorno do bufão. Contudo, talvez caiba ao historiador fazer alguns breves apontamentos. Após a vitória de Trump, uma cena em específico — que girou pelos reels do Instagram e similares — me chamou bastante atenção.
Tratava-se de uma das emblemáticas e clássicas cenas do cinema de Charlie Chaplin. Interpretando o ditador Adenoid Hynkel, líder supremo da Tomânia, Chaplin fez um dos filmes (O Grande Ditador) mais “políticos” de todos os tempos. Vale dizer, para além de todo filme ser evidentemente uma ação política, Chaplin faz uma paródia genial de Hitler e sua megalomania. Lançado em 1940, em pleno avanço nazista por todo a Europa, o filme é um libelo implacável contra a tirania, o militarismo, a mania de grandeza, em suma, o vazio devorador que assola a sanha dos ditadores.
Entre tantas cenas emblemáticas, a que rodou pelo mundo virtual foi aquela na qual Hynkel — a paródia de Hitler — está em seu gabinete despachando e tramando em segredo seus planos de domínio mundial. Num determinado momento, quando se vê sozinho no recinto, Hynkel vai em direção ao globo terrestre do escritório, fitando-o de forma destemida, ambiciosa, implacável. Ao tocar o globo, Hynkel diz: “aut Caesar aut nullus”, ditado latino que significa: Ou César ou nada! Ou seja, as pretensões alucinantes de um Julio Cesar do mundo moderno. Em seguida, profere: “Imperador do Mundo! Ah, meu mundo!” Logo depois, o ditador retira o globo de seu eixo, segura-o com firmeza, dá uma sinistra gargalhada, performa suas poses de macho conquistador de mundos, joga o globo pra cima, pra baixo, pro lado, sobe na mesa, vira de costas, dá uma poética bundada no mundo e, ao fim, aperta tanto o seu mundo que o vê explodir diante de seus olhos tirânicos, caindo depois aos prantos sobre a mesa.
A cena é uma das mais geniais sequências da história da arte e do cinema. Chaplin, no auge triunfal de sua carreira, acerta na veia! Tira sarro dos tiranos, mas o faz com um tom de bailarino que era, um corpo que dança, que é leve, que sopra uma dose de humor e poesia sobre nós, nos fazendo esquecer por alguns instantes que estamos diante da figura de um terrível genocida. Acontece que (olha lá o historiador chato chegando) a cena que rodou pelos reels nos sugere que o novo Hynkel (ou Hitler) seria Donald Trump. Que com seu retorno, brinca de dono do mundo, pondo tudo a perder. Mas não, não. Trump não é Hitler. Ora, o supremacismo que Trump representa é profundamente norte-americano e é anterior a Hitler, em outras palavras, ser racista e xenófobo é uma invenção bem anterior e se aplica a todo o chamado Ocidente “branco e civilizado”.
O que Trump representa certamente contém elementos que estavam no fascismo de Mussolini e no nazismo de Hitler. Porém, mais do que isso, é a faceta supremacista que nunca foi definitivamente derrotada na história dos EUA. Mas o que interessa aqui é aquilo que os historiadores aprendemos desde muito cedo: a História não é uma mera repetição e Trump não é o novo Hitler, nem como tragédia e nem como farsa. Trump é filho absoluto do neoliberalismo, do poder dos grandes complexos midiáticos, se fez na TV, na mídia, frequentando inclusive séries aclamadas de Hollywood. Trump é filho de uma sociedade espetacular — uma espécie de mundo invertido onde só a imagem importa — e vive em função disso. Se nosso mundo foi dominado em todos os âmbitos pela vontade de sermos vedetes de cinema (artistas de cinema), Trump é exatamente o bilionário vedete que todos pensam que gostariam de ser.
Antes dele veio o ator mequetrefe Ronald Reagan, que virou presidente, mas há também o exemplo do fanfarrão Berlusconi na Itália, ou o quase exemplo de Silvio Santos no Brasil, que sempre aparecia com suas pretensões políticas presidenciais. De muitas maneiras, Jair Bolsonaro foi produto da TV, do pseudo humor de talk shows facistoides, sedentos por ouvir os impropérios autoritários do Capitão. Enfim, todos foram forjados pela “câmera do cinema” e pela terra sem lei que era a TV. Na era da internet e das mídias sociais, a coisa muda um pouco de figura e os donos das big techs estão cada vez mais cientes que não precisam de intermediários. É muito simples entender. Quem viu a aclamada série “House of Cards” sabe que num determinado momento o tirânico Frank Underwood percebe que para prosperar ainda mais ele precisava estar do outro lado da linha, ou seja, entre os lobistas que loteiam os interesses da “Casa Branca”.
Muito que bem, Trump — o “velho político que veio da TV” — já ficou para trás. E se querem uma comparação da repetição da História como farsa, deixo aqui a minha: o “novo” Hitler não é Trump, o novo Hitler seria o homem que foi nomeado para liderar o novíssimo “Departamento de Eficiência Governamental”, quem? Quem? Quem? ELON MUSK! Sim, ele. Para o desespero dos Estados Democráticos de Direito do mundo inteiro, o bilionário delirante, mais “louco” que os mais alucinados dos tiranos, terá — digamos assim — o cargo dos cargos na nova gestão, que no neoliberalismo como religião significa: cortar, desmontar a máquina pública, deixar o mercado reinar livremente matando todas as gentes… mas garantir seus subsídios, seus interesses e projetos literalmente lunáticos. Se liga, minha gente brasileira, é praticamente dizer que Musk é o novo dono do mundo. E até megafone ele tem, o famigerado “X”, que matou o velho sopro, o tweet do passarinho.
Voltando à cena de Hynkel, ele hoje então seria “Muskel”, aquele que ameaça acabar com o mundo como o conhecemos. As cruzes ou o “X” do uniforme de Hynkel seriam o “X” do uniforme high tech de Muskel. Um bilionário domina e ameaça o mundo… e você, eu, nós, sairemos para trabalhar de manhã. E não esperem de Muskel a mesma “poesia” de Hynkel… cadê o Chaplin para trazer um pouco de paz, pão e poesia? No mesmo filme, na cena final, a mensagem de um Hynkel arrependido — que na verdade era o barbeiro judeu — ainda nos desafia a parar tudo o que estamos fazendo exatamente agora para fazermos a única coisa certa: derrubar todos os tiranos, até aquele que adormece aí, dentro de você, de mim, de nós:
“Não pretendo governar ou conquistar quem quer que seja. Gostaria de ajudar — se possível — judeus, o gentio… negros… brancos. Todos nós desejamos ajudar uns aos outros. Os seres humanos são assim. Desejamos viver para a felicidade do próximo — não para o seu infortúnio. Neste mundo há espaço para todos. A terra, que é boa e rica, pode prover a todas as nossas necessidades. O caminho da vida pode ser o da liberdade e da beleza, porém nos extraviamos. A cobiça envenenou a alma dos homens… levantou no mundo as muralhas do ódio… e tem-nos feito marchar a passo de ganso para a miséria e os morticínios. Criamos a época da velocidade, mas nos sentimos enclausurados dentro dela. A máquina, que produz abundância, tem-nos deixado em penúria. Nossos conhecimentos fizeram-nos céticos; nossa inteligência, empedernidos e cruéis. Pensamos em demasia e sentimos bem pouco. Mais do que de máquinas, precisamos de humanidade. Mais do que de inteligência, precisamos de afeição e doçura. No décimo sétimo capítulo de São Lucas está escrito que o Reino de Deus está dentro do homem — não de um só homem ou grupo de homens, mas dos homens todos! Está em vós! Vós, o povo, tendes o poder de criar máquinas. O poder de criar felicidade! Vós, o povo, tendes o poder de tornar esta vida livre e bela… de fazê-la uma aventura maravilhosa.
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