Quem conhece uma favela no Rio de Janeiro não pode afirmar que conhece a todas. Quem já frequentou uma igreja evangélica não pode sair por aí dizendo que sabe como todas elas funcionam. A Zona Sul do Rio de Janeiro não é plana, muito menos se reduz ao corredor turístico. Do alto das Favelas Chapéu Mangueira e Babilônia, temos uma visão privilegiada do mar do Leme. O papinho que todo preto é igual, além de racista, é crivado por preconceito de classe. Quem define um pastor, define apenas um sujeito e o que passa disso é generalização. E quando o protagonista da crônica é um homem negro de 42 anos, evangélico, casado, uma filha, trabalha como mototáxi, ativista social na Favela da Babilônia, conhece geral no Chapéu Mangueira, gosta de baile funk e foi pastor da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD)?
Aí o bagulho ficou sinistro!
Quando menino, aos 12 anos, foi convidado para participar de um núcleo de oração que acontecia regularmente na laje do vizinho. Gente que depois de um dia duro de trabalho se reunia para ler a Bíblia, orar uns pelos outros e cantar louvores. Gente comum das diferentes faixas etárias congregadas no alto da favela, de costas para a mata e de frente para o mar, com o reflexo da luz da lua.
O vizinho anfitrião o convidou para no domingo vestir a melhor roupa para assistir ao culto no templo da IURD do bairro do Leme. Neste dia, a sua vida mudou. Toda a sua adolescência foi marcada pelas atividades que aconteciam naquele local. Aquela comunidade passou a ser a sua família. Voluntarioso, curioso, estava sempre disposto a servir. Aos 17 anos foi oficialmente reconhecido como obreiro. O uniforme era uma distinção, o primeiro degrau da hierarquia da IURD. Não ficou deslumbrado, apenas empolgado para servir no dia a dia da igreja com mais empenho. Aos 21 anos foi “levantado” como pastor auxiliar, um tipo de supervisor dos obreiros que eventualmente substituía o pastor em algumas situações quando solicitado.
Foi consagrado pastor titular aos 32 anos. A IURD o transferiu para o Vale de Jequitinhonha, no Estado de Minas Gerais. À época, a região era conhecida como o “Vale da Fome”. No Brasil profundo, perto do rio seco e longe do mar, o pastor Anderson se deparou com uma miséria diferente da que conhecia nas favelas da Babilônia e Chapéu Mangueira. Enquanto pregava do púlpito sobre prosperidade e fé para as conquistas pessoais, observava os seus irmãos paupérrimos clamando pelo impossível. Algumas vezes, ao término das reuniões, corria à própria despensa para discretamente doar alimentos aos mais necessitados. Pedia segredo aos beneficiários porque não tinha para todos os que precisavam e não seria uma prática aprovada pelo seu bispo imediato. Sentia culpa, como se estivesse burlando o sistema ou pecando pela falta de fé.
No “Vale da Fome”, o pastor Anderson se sentiu isolado. De um lado o bispo cobrando resultados e do outro o povo miserável clamando pelo pão de cada dia de forma literal. Não suportou e rompeu.
– Por que você deixou o pastorado e saiu da IURD?
– O Deus que eu conhecia, amava e servia não correspondia ao Deus de quem eu falava nas minhas pregações. Era como se eu estivesse traindo o meu Deus pessoal com o Deus funcional dos meus turnos de trabalho.
O Anderson voltou para o alto da Favela da Babilônia. Foi duro admitir que a igreja da sua adolescência e juventude não existia mais. A IURD cresceu vertiginosamente e aumentou os seus poderes. Alguns que com ele serviram como obreiros e pastores ascenderam na estrutura hierárquica da igreja. Com um forte sentimento de inadequação, compreendeu que estava só. Sobrou. Definitivamente, estava fora. Perambulou pelas outras igrejas evangélicas em busca de uma comunidade de fé. Mas só encontrou discursos das igrejas sedes, que do asfalto, davam a pauta e os modos, reproduzidos pela sua gente na favela. Daí, naquela altura da vida, não estava disposto a se submeter ao colonialismo evangélico.
Começou a atuar como mobilizador social. Retomou os estudos, terminando a faculdade de Pedagogia na UFF e com o projeto de iniciar a faculdade de Direito. Descobriu a pedagogia do oprimido de Paulo Freire e se encantou pelos escritos do Rubem Alves. Como mototáxi, descia e subia a Ladeira Ary Barroso para colocar comida na mesa de casa. Trabalho duro, por isso ficava indignado em ter que pagar a taxa semanal para ter direito ao colete salvo-conduto. Impossível bater de frente com o sistema.
Na base, conversando com as pessoas sobre a necessidade de fortalecer a comunidade para promover mudanças. Quando foi se filiar ao Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), descobriu que seu registro no Partido Republicano Brasileiro (PRB) ainda estava vigente. Rememorou que ainda na condição de pastor da IURD recolheu muitas assinaturas para viabilizar a fundação do PRB (atualmente, apenas, Republicanos). Ficou no PSOL por dois anos levando a sério o ideal de base popular e chegou à seguinte avaliação:
– Sabe como é, partido de esquerda, muito ego, um quer ser mais de esquerda do que o outro. Eu estava lá pela pauta classista e era discriminado pela galera da pauta identitária. Minha pauta é a favela. Não deixei de ser massa de manobra na IURD para me transformar em massa de manobra no PSOL. Dei linha!
No cenário político atual, Anderson lamenta que bons pastores estão em silêncio enquanto os pastores da lógica do poder cresceram e se acham grandões no bolsonarismo:
– A igreja evangélica na sua maioria não é parceira daqueles que lutam pelos pobres. Preferem rotular essa turma de comunistas para descredenciá-los como cristãos. Para muitos evangélicos, basta ganhar a alma para Cristo e deixar os corpos à própria sorte, como se a única vida que importasse fosse a após a morte.
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