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Jessé Souza

Escritor, pesquisador e professor universitário. Autor de mais de 30 livros dentre eles os bestsellers “A elite do Atraso”, “A classe média no espelho”, “A ralé brasileira” e “Como o racismo criou o Brasil”. Doutor em sociologia pela universidade Heidelberg, Alemanha, e pós doutor em filosofia e psicanálise pela New School for Social Research, Nova Iorque, EUA

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O 8 de janeiro e a importância do aprendizado político

A mudança social não é atributo da “prática”, como alguns pensam, mas sim, antes de tudo, um projeto “teórico” e ideacional
13/01/2024 | 11h27

Até agora, as investigações da tentativa de golpe do dia 8 de janeiro de 2023 só alcançaram os peixes pequenos, a massa de manobra manipulada por financiadores e mentores. Nada sobre Bolsonaro e sua família e nada, muito especialmente, sobre os comandantes militares que participaram ativamente da tentativa de golpe. A jornalista Julia Dualibi, que fez um documentário sobre a tentativa de golpe, confidenciou recentemente em entrevista uma preocupação de quase todos os entrevistados por ela, que diziam em “off” que a dificuldade em enquadrar os comandantes correspondia ao desejo de não tumultuar a relação com os militares. Uma covardia indesculpável. Assim, mais uma vez teríamos um “acochambro” que garante a continuidade e a impunidade de golpistas. Não seria a primeira vez.

O general Dutra de Menezes, por exemplo, comandante do Planalto à época, alinhou tanques e tropa direcionados contra a polícia do GDF, já sob intervenção federal, contrariando ordem expressa do presidente, supostamente para evitar um “banho de sangue”. Ora, não cabe ao general fazer este tipo de análise, mas apenas obedecer à ordem presidencial. Mas Dutra Menezes bancou a chantagem, apontou armas e tanques aos agentes de um poder instituído e eleito, protegeu os golpistas dando-lhe a oportunidade de fugir e ganhou tempo. Ele não foi o único comandante militar envolvido, embora tenha sido o mais ousado.

O 8 de Janeiro poderia e deveria ser uma dessas janelas da história onde uma oportunidade rara de aprendizado político e social se oferece a uma sociedade. A partir dele poder-se-ia desenrolar o novelo de como funciona o acordo de elites que governa de fato o país. E dentro deste contexto o papel preponderante que os militares assumem. É preciso que os militares voltem à caserna e cumpram suas obrigações constitucionais. Isso só será alcançado com uma punição severa para os comandantes golpistas, para os financiadores do agronegócio e para Bolsonaro e sua família. Uma resposta pífia seria sedimentar o caminho para coisas piores num futuro próximo.

A oportunidade para criminalizar esse pacto elitista-militar, que é, na verdade, o núcleo da cultura de golpes de Estado criada no Brasil desde os anos 1930 para evitar a participação popular e de seus líderes, pode não se oferecer mais tarde. É necessário que se tenha coragem e firmeza nesta hora. A reconstrução deste episódio para o público, com a perseguição a seus responsáveis, poderia fornecer a narrativa que a democracia brasileira precisa para se consolidar como ideia também no coração popular.

Nem todos percebem a importância estratégica deste tipo de aprendizado. São, normalmente, pessoas presas ao contexto imediato e que só refletem no curto prazo. Recontar essa história serviria a vários fins, todos fundamentais para que os valores democráticos tenham penetração popular. A exposição de Bolsonaro, dos militares golpistas e dos financiadores ricos não permitiria apenas que a lei chegasse a pessoas concretas. Permitiria, no melhor dos casos, a percepção popular da forma como a dominação social, política e econômica entre nós funciona e quais são, portanto, os verdadeiros inimigos do povo.

Jamais houve aprendizado social e político em nenhum lugar sem uma nova narrativa da história e do funcionamento social. A mudança social não é atributo da “prática”, como alguns pensam, mas sim, antes de tudo, um projeto “teórico” e ideacional, ao se construir na cabeça das pessoas comuns uma forma alternativa e crítica de perceber a sociedade. Sem que isso ocorra, o provável é continuação da nossa cultura de golpes de Estado e, portanto, do domínio espúrio de uma pequena elite econômica e militar profundamente antipopular.

 

 

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