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O Brasil, um grande sertão

São muitas as linguagens que o filme de Guel Arraes emprega para reproduzir, em luz e som, tudo o que Guimarães Rosa nos entregou em texto
08/07/2024 | 06h29

Não é nada fácil tentar levar para a linguagem do cinema qualquer obra prima da literatura. “Grande Sertão Veredas”, de Guimarães Rosa, então, eu diria que é o desafio supremo. Mas Guel Arraes se valeu de todos os recursos que o cinema oferece para traduzir o conteúdo em som, imagem e movimento mantendo um ritmo narrativo que respeita e homenageia o grande escritor.

Sem medo da dramaticidade do texto, o filme abraça os altos e baixos da narrativa, incorpora a poesia da obra, que é a alma da história toda. Tudo está lá na tela. O filme, porém, vai além do texto para melhor apresentá-lo.

Não é uma história comum, como aquelas que a gente costuma ver no cinema. Nada disso! Reviver Guimarães exigiu, aqui, somar teatro, cinema, dança e um conjunto de imagens para nos acertar em cheio, em todos os sentidos.Para uma obra dessa envergadura, era preciso mesmo recorrer a todos os meios. Um mergulho na alma humana que, no livro, vaga pela paisagem do sertão brasileiro, não se limita a um espaço geográfico, ou temporal.

Os mesmos conflitos do livro foram transportados para os nossos dias. O sertão de Rosa se transformou em uma favela chamada Sertão. Os jagunços da literatura assumiram o papel de integrantes de gangues que lutam entre si e também com a polícia, o poder do Estado.

Quem lê o livro pela primeira vez só desconfia da verdadeira identidade do personagem Diadorim do meio para o fim da narrativa. Hoje, não faria sentido guardar o segredo por tanto tempo. O filme não tenta esconder que é uma mulher disfarçada como homem. E assim nos permite acompanhar mais de perto a tensão na relação dos dois.

O Riobaldo de Caio Blat é do tamanho da humanidade. Como no livro, ele narra a própria história, o conflito da paixão por quem pensa ser um homem, as sucessivas desilusões com as instituições, o mergulho fundo e sem saída na força de um sentimento arrebatador e, ao mesmo tempo, incompreensível. Teatro no cinema, com recursos de cortes que hora focam parte do rosto, os olhos, hora o corpo todo, testemunha da história de toda uma população.

Não é interpretar um brasileiro, calejado pelas notícias recorrentes de mortes de crianças nas comunidades e periferias, vítimas de “balas perdidas”, sentir a dor das famílias constantemente cercadas por essa violência. O Grande Sertão cinematográfico nos arrasta lentamente pelo sofrimento da mãe de Nina, vítima fatal de mais um tiroteio no Sertão-favela. Ela corre, desesperada, mas na tela, a cena em câmera lenta impede que a gente corra para longe dessa realidade sufocante.

São muitas as linguagens que o filme emprega para reproduzir, em luz e som, tudo que Guimarães Rosa nos entregou em texto. Depois de ver o filme, me dei conta de que não poderia mesmo ser de outra maneira. Se “viver é muito perigoso”, como diz o autor, o risco aqui era dizer menos, bem menos do que o livro.
No entanto, a soma das linguagens do teatro, do cinema, e da dança deram ao filme um alcance maior, mais amplo. Tão complexo como a aparente simplicidade do Sertão de Rosa.

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