Queria ter força para falar do cessar-fogo em Gaza com voz mais doce, mas a única doçura que existe nesta história vem do silêncio. No momento há que se celebrar um instante de silêncio de muitos e muitas, que veem arrefecer o medo do céu cair sobre suas cabeças quase literalmente. Este é um fim esperado, necessário e trágico, pois não pode ser considerado êxito um comando que ao baixar das fumaças das bombas e dos tiros deixa ver 45 mil cadáveres. Uma maioria de mulheres e crianças.
Não há ser humano com algum coração que não queira abraçar as famílias aliviadas, que não sorria ante a celebração do fim do terror…, mas o alento não substitui o pavor e o vazio de um território em escombros e sustentado sobre destroços feitos de corpos humanos.
Toda a tecnologia dos senhores da guerra que não sujam seus ternos caros, mas sentenciam à morte, não foi e não é capaz de trazer o mínimo de dignidade a este conflito e outros espalhados pelo planeta. Alguns quase tão sangrentos quanto, mas menos famosos.
A disputa pela paternidade da construção de uma paz relativa e cheia de condicionantes exala um mau odor de vaidade oportunista. No fim, a brutalidade pré-histórica e medieval da conquista de território pela força, naturalizada por cabeças decepadas é a tônica deste enredo. É preciso aproveitar este pequeno momento sem sirenes ou explosões ao menos nesta parte do globo para pensar em quem colocamos nossa admiração, nossos votos, nossa fé irrefletida.
Não há como não falar de Gaza neste dia. Foram 15 meses e 45 mil mortos. Cerca de 3 mil corpos por mês e 100 por dia. São números conservadores. Há mais, bem mais. Há o desenraizamento, as humilhações, os estupros, os órfãos, os pais e mães sem seus filhos e filhas, os partos e operações feitas a sangue-frio em meio à destruição, os locais de memória afetiva detonados, a fome, a sede, a falta total de higiene, as doenças.
Há ainda mais. O sentimento de solidão, o medo, o vazio, a raiva, o ódio, o desalento, a desesperança, a vontade de vingança. O instante de alívio não tem força suficiente para apagar estes “outros males” e o trabalho de reconstrução que não os levar em conta será incompleto e semente para outros conflitos.
Não há como não falar em Gaza, mas no último mês de dezembro, todas as noites foram de tiroteio no bairro onde moro. Na comunidade próxima, foi imposto um toque de recolher às 18h. O som dos tiros mudou. Há algo novo e diferente das tradicionais máquinas de matar. Há drones, tiros do alto, granadas, corpos…, há guerra, mas ela não parece existir de fato para muita gente.
Curioso que a guerra distante pareça mais real que a que está muito, muito perto e, como ela não é vista como o que realmente é, passa a não existir também a real negociação por aquele silêncio. A ausência de conflito é movida a interesses. Não interessamos. Quinze meses, quinze anos, quinze décadas… Como podemos conviver tanto tempo com dores tão inomináveis?
Como não estamos dispostos e dispostas a desistir do direito à vida plena, arrumamos também armas poderosas. A foto deste texto veio do projeto do Morro dos Macacos, em Vila Isabel. O Coletivo @macacosvive, com o professor André Fernandes, está lendo com os meninos o livro infantil “Gênios da Nossa Gente”, que escrevi com Estevão Ribeiro. A vida resumida de trinta nomes de pessoas geniais. Todas um dia foram crianças exatamente como eles.
Talvez no futuro tenhamos soldados nas guerras que valem a pena lutar.
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