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O emocionado desabafo de uma professora gaúcha que retomou aulas na catástrofe

"Depois de sorrir, perguntei a ela se o coração estava bem. Ela respondeu que não havia glitter no coração"
29/05/2024 | 06h58

Em meio à catástrofe que se abateu sobre o Rio Grande do Sul, com enchentes tomando cidades inteiras, vários prefeitos e o governador decidiram retomar as aulas na rede pública.

O objetivo seria acolher os alunos que tiveram suas vidas afetadas, seja por perdas materiais ou de outro tipo. Para isso, foram mobilizadas as professoras e professores que conseguissem ter acesso às escolas em meio ao aguaceiro.

A intenção, a princípio louvável, esbarra em um obstáculo: também aqueles que deveriam acolher estão fragilizados com o cenário devastado. Mesmo quem não sofreu prejuízos materiais ou com perda de vidas de pessoas próximas está emocionalmente abalado.

Professora da rede municipal de Cachoeirinha, cidade da região metropolitana de Porto Alegre, Daniela Nascimento enviou ao site um texto para contar o drama de ter que acolher e ao mesmo tempo precisar de acolhimento.

Leia a seguir:

Os que conseguem chegar

Não gosto de falar sobre o que estou pensando, sentindo. Mas o que tem acontecido nos últimos dias, meio que exige algo assim.

Minha família não foi afetada diretamente pela situação das chuvas que tem assombrado nosso querido estado e, em certo ponto, eu não me sinto no direito de vir e falar em nome de uma das pessoas afetadas diretamente. Contudo, como costuma ser, aqueles que precisam ser ouvidos não têm voz ou têm suas vozes silenciadas, ignoradas. Decido, então, falar em meu próprio nome e deixar outros lugares de fala para quem a eles têm o devido direito.

Falo como uma professora de ensino público, de uma cidade da região metropolitana de Porto Alegre, a qual foi fortemente afetada direta e indiretamente pelas enchentes deste mês. Sou uma daquelas que consegue chegar…

Consigo, sem maiores dificuldades, me fazer fisicamente presente em minha escola para receber os alunos que têm a possibilidade de ir às aulas. Sou uma daquelas que, como dizem e repetem por aí, não foi afetada pela calamidade.

Mas, vamos lá, vamos avaliar essa não afetação: — Minha casa está acessível, com todas as regalias que o capitalismo pode promover (teto, água, luz e alimentação). — Check! — Minha família imediata e demais parentes estão bem. — Check! — Meu emprego de funcionária pública, garantido. — Check! — Liberdade de ir e vir, e com conforto. — Check! — Saúde física. — Check! — Saúde mental. — Em pedaços.

Pronto, chegamos em um ponto especial… Saúde mental.

Ser humano pressupõe ter consciência e somos pensantes. Esta semana fomos orientados, enquanto profissionais da educação, a retornarmos à escola. Nos dois primeiros dias teríamos reuniões e atividades de planejamento, para juntos encontrarmos soluções para a recepção da comunidade escolar.

Por sorte a direção de minha escola é maravilhosa, humana e consciente, muito consciente, da empreitada que nos aguardava. Discutimos muito sobre como seria receber pessoas despedaçadas e lidar, não com suas contingências físicas, sociais e emocionais, mas com a nossa impotência diante de tudo o que lhes aconteceu.

A orientação da Secretaria da Educação era acolher. Como? Não nos disseram. O primeiro dia de reunião foi como uma montanha-russa. Falando com propriedade sobre meus sentimentos e especulando o de alguns colegas, posso dizer que eu sofri, dei risadas, chorei, tive movimentos repetitivos involuntários nas pernas, braços, tive taquicardia, dor no peito, sonolência, entre outros sintomas e sinais de ansiedade.

Como psicóloga que sou, tenho o hábito de observar ao redor, focando principalmente na expressão facial e demais comportamentos. Por baixo das mesas as pernas gritavam, as mãos entrelaçadas, tentando prender sentimentos reais que não seriam recebidos naquele acolhimento.

Alguns apostavam na irreverência, contando piadas e fazendo de sua desgraça uma história cômica, apenas para não demonstrar aquilo que não estava autorizado a vir à tona.

“Como vocês estão se sentindo?” foi a pergunta que nos fizeram no segundo dia de reunião. A mantenedora estava preocupada com nossa saúde mental, não é?! Silêncio. Não estamos aqui? Somos os que conseguem chegar…

Insistência, afinal, precisamos acolher os professores: “como vocês estão se sentindo?” Uma colega resolveu expor, então. Querem ouvir? Aí vai: “eu não me sinto preparada para enfrentar a demanda que receberemos”.

A resposta veio em forma de uma imposição velada, mascarada de “compreensão”. Uma voz delicada, suave, feminina, tentando esconder a cruel frase que era a que nos chegava aos ouvidos: “não interessa o que você sente, você precisa receber essa demanda”.

A demanda: vidas humanas despedaçadas. Como professores, atendemos todos os dias essas vidas humanas despedaçadas. Isso não quer dizer que sabemos como lidar com elas. Diz muito sobre no que se transformou o magistério neste país. Se antes era preciso lidar com língua portuguesa, matemática, geografia, ciências, história… Hoje precisamos lidar com o sofrimento das crianças, com famílias disfuncionais, com raiva e ódio mascarando uma dor que ninguém enxerga, portanto, não há tratamento, quiçá cura.

E agora, Rio Grande, o que nós vamos fazer?

Mal havíamos assentado as dores da pandemia da Covid-19. O primeiro dia com alunos foi desesperador. Esperávamos de tudo, inclusive nada. O que recebemos: um pouco de tudo e um assustadoramente vazio, grande e desolador “nada”.

Uma aluna que não é da minha turma, mas com quem convivo às vezes, em minhas substituições corriqueiras, se aproximou e me deu um abraço muito apertado. Ela estava com os olhos pintados, cheios de glitter e sobre isso comentei. Ela respondeu “tenho que estar bonita para a escola”. Depois de sorrir, perguntei a ela se o coração estava bem. Ela respondeu que não havia glitter no coração. E quando ela se afastou eu parei para refletir e me dei conta de que fiz o mesmo.

Nos dois dias de reunião e naquele primeiro dia de aula eu me preocupei com a estética. Essa atitude me fez parar e reavaliar os sentimentos que estavam em jogo.

A conclusão é: não deveríamos estar ali.

No segundo dia de aula a chuva voltou com força total. Locais antes não alagados agora recebiam a agressividade das águas.

Os alunos reagiram de diversas maneiras: medo, dores, choro, risadas, etc.

E a conclusão é: não deveríamos estar ali. O terceiro dia de aula foi cancelado, afinal, todos sabiam que não deveríamos estar ali.

Mas somos aqueles que conseguem chegar.

(Daniela Nascimento, professora da rede municipal de Cachoeirinha)

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