Se eu fosse buscar na literatura um modo de tentar metaforizar esse “estado de natureza noticioso” (estado de natureza quer dizer, a partir de Hobbes, a “guerra de todos contra todos”) que se instaurou na grande mídia e nas redes sociais, convocaria o nosso Flaubert, Machado de Assis, com seu conto “A sereníssima república”, na qual o Cônego Vargas relata sua descoberta: “aranhas falantes, que se organizaram politicamente”.
O Cônego lhes ofereceu um sistema eleitoral a partir de sorteio, onde eram colocadas bolas com os nomes dos candidatos em sacos. Chamou o “país das aranhas” de Sereníssima República. Claro que as aranhas arrumaram modos de driblar as próprias regras do sistema.
O inusitado ocorreu quando da eleição de um cargo importante para o qual concorreram dois candidatos: “Nebraska contra Caneca”. Em face de problemas anteriores — grafia errada de nomes de candidatos nas bolas — a lei estabeleceu que uma comissão de cinco assistentes poderia jurar ser o nome inscrito o próprio nome do candidato. Feito o sorteio, saiu a bola com o nome de Nebraska.
Ocorre que faltava ao nome a última letra. As cinco testemunhas juraram que o nome vencedor era mesmo de Nebraska. Mas Caneca, o derrotado, impugnou o resultado. Trouxe um grande filólogo, um bom metafísico, que apresentou a sua tese:
“Em primeiro lugar, não é fortuita a ausência da letra “a” do nome Nebraska. Não havia carência de espaço. Logo, a falta foi intencional. E qual a intenção? A de chamar a atenção para a letra “k”, desamparada, solteira, sem sentido. Ora, na mente, “k” e “ca” é a mesma coisa. Logo, quem lê o final lerá “ca”; imediatamente, volta-se ao início do nome, que é “ne”. Tem-se, assim, “cané”. Resta a sílaba do meio “bras”, cuja redução a esta outra sílaba “ca”, última do nome Caneca, é a coisa mais demonstrável do mundo. Mas não demonstrarei isso. É óbvio. Há consequências lógicas e sintáticas, dedutivas e indutivas… Vocês não entenderão. E, aí está a prova: a primeira afirmação, mais as sílabas “ca” e as duas “Cane”, dá o nome Caneca.” Eis o vencedor: Caneca!
Assim também alguns juristas e jornalistas demonstram que a reunião de Bolsonaro, o 8 de Janeiro, a invasão da PF, a bomba que fracassou e as manifestações na frente dos quarteis… tudo não passa de “ditadura do STF”. Sim, a culpa é do Xandão. E isso é facilmente explicável.
Chamemos o filólogo da Sereníssima República. Só ele transforma Nebraska em Caneca. Só ele transforma a tentativa de golpe em uma manifestação democrática.
Vocês não entenderam? Que pena. É tão obvio. Jornais dão em manchete: especialistas discutem se houve tentativa de golpe. Pronto. Há quem diga que não.
Bom, Nebraska virou Caneca. Eis o vencedor… na Sereníssima República. Como diz o filólogo Múcio, o golpe só não ocorreu graças aos militares. Bingo. E depois dizem que o filólogo do conto de Machado exagerou…!
Deixe um comentário