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Jessé Souza

Escritor, pesquisador e professor universitário. Autor de mais de 30 livros dentre eles os bestsellers “A elite do Atraso”, “A classe média no espelho”, “A ralé brasileira” e “Como o racismo criou o Brasil”. Doutor em sociologia pela universidade Heidelberg, Alemanha, e pós doutor em filosofia e psicanálise pela New School for Social Research, Nova Iorque, EUA

O Holocausto justifica um novo Holocausto?

Ainda sobre a fala de Lula e suas reações
22/02/2024 | 16h50

O país foi sacudido nos últimos dias por uma série de declarações em resposta à comparação feita por Lula acerca do Holocausto palestino, comparando-o com o Holocausto judeu na Segunda Grande Guerra. Lula foi corajoso e oportuno, assumindo a postura de líder dos países oprimidos, defendendo uma ordem mundial mais justa. Mas este tema é sensível por várias razões.

Primeiro, que se diga logo de início, o que aconteceu com os judeus na Europa durante a guerra foi realmente abominável e indesculpável. No entanto, a construção do Holocausto como evento único na história é duvidosa.

A construção de guetos para cidadãos de segunda categoria, roubo de propriedade e massacres indiscriminados, como aconteceu com os judeus, acontecem, obviamente, do mesmo modo e pelas mesmas razões com os palestinos hoje. A comparação é, portanto, perfeita.

O que é diferente? A quantidade de gente oprimida? Ora, os russos perderam 22 milhões de vidas na Segunda Guerra Mundial, sendo massacrados pelos nazistas precisamente como “raça inferior eslava”, do mesmo modo que os judeus. A ordem era “limpar a terra” para futuros assentamentos nazistas. Aliás, não por acaso o mesmo interesse de Israel no genocídio atual dos palestinos. Este talvez tenha sido “quantitativamente” o maior genocídio da história, a imensa maioria de civis inocentes.

Mas o mundo esqueceu o que aconteceu com os russos. Uma pesquisa feita na França no calor dos acontecimentos, logo depois da guerra, mostrava que, para 80% da população, a União soviética era percebida como a principal responsável pela vitória na guerra. Cinquenta anos depois, a mesma pesquisa mostrava a mesma proporção, agora em favor dos americanos. O efeito do bombardeio de propaganda e filmes de Hollywood, durante 50 anos, recontando do ponto de vista americano a guerra, explica a mudança.

Talvez seja o caso dos judeus. Uma máquina de propaganda montada com muito dinheiro e acesso aos mesmos meios de coação e convencimento dos americanos foi construída depois da guerra para que se elegesse o Holocausto judeu como fato único de modo a marcá-lo eternamente como “povo perseguido”.

Pior, a propaganda seletiva serve para que as ações do Estado de Israel, mesmo que indefensáveis, sejam vistas para toda a eternidade como “compensação” para o sofrimento na Segunda Guerra. Como o grande pensador palestino Edward Said defendia, a culpa em relação aos judeus e seu massacre é, precisamente, o elemento que justifica o Holocausto palestino. A comunidade internacional concedeu licença de matar sem temer consequências aos israelenses. Assim como o agente 007 do cinema, o Estado judeu tem permissão para matar indiscriminadamente, porque os judeus foram vítimas de massacres indiscriminados. Apesar de absurdo, este é o nó górdio da questão.

Qualquer crítica, mesmo de judeus conscientes, como Noam Chomsky e tantos outros, é vista como antissemitismo, associando implicitamente qualquer crítico aos nazistas. Hannah Arendt foi das primeiras a sentir o que se espera de quem critique não só Israel, mas as elites judaicas que controlam boa parte da riqueza e dos meios de comunicação de massas no mundo todo. Chomsky sempre chamou a atenção para os muitos massacres de Israel ignorados na imprensa americana.

Por vínculos de amizade e de interesse comum se produz uma articulação de todas as elites mundiais, seja metropolitana, seja periférica, quando o assunto é Israel. Isso explica também a reação da imprensa brasileira. Como a imprensa é a boca da elite, a seletividade de tratamento a judeus e palestinos se explica pela comunhão entre os interesses elitistas em todo lugar articulados entre si como que se fosse por música. A acusação pronta de antissemitismo é a arma para que se pratique um genocídio covarde e indesculpável. É para isso, antes de tudo, que ele serve.

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