Os leitores do portal ICL Notícias têm acompanhado nos últimos dias a série de reportagens sobre as acusações de crimes ambientais contra os donos da fazenda onde foi gravada a novela “Terra e Paixão”. Nós republicamos aqui o precioso trabalho de investigação do site “De Olho nos Ruralistas”, que, depois de rigorosa apuração, acrescentou às acusações do Ministério Público informações muito desabonadoras para os proprietários do imóvel.
A TV Globo, que alugou a fazenda para servir de cenário à trama de Walcyr Carrasco, não é alvo das acusações. Mas tem um desgaste indireto. Afinal, por meses a fio a novela promoveu a propriedade em que os donos desmataram áreas de reserva ambiental, despejaram agrotóxicos ilegalmente, desviaram curso dos rios e criaram peixes sem licenciamento, segundo aponta o MP.
Com a exposição em rede nacional na emissora de maior audiência do país, os autores desse festival de irregularidades acabaram premiados. Certamente, hoje a fazenda de “Terra e Paixão”, mesmo com todas as barbaridades ambientais cometidas ali, vale muito mais que antes da novela.
Espera-se que o setor de Compliance da Globo faça melhor trabalho daqui para a frente.
Feita essa crítica à emissora, é preciso reconhecer que o saldo da novela que terminou nesta sexta-feira (19) não pode ser reduzido apenas ao papel de propagandista de fazendeiros inescrupulosos.
Mais uma vez, a Globo manteve o seu compromisso de combater a homofobia e o racismo. No último capítulo, teve mais destaque o beijo apaixonado do casal gay Kelvinho e Ramiro (Diego Martins e Amaury Lorenzo) que a dupla hétero que começou como protagonista, Caio e Aline (Cauã Raymond e Bárbara Reis).
A forma ao mesmo tempo engraçada e emocionada como Walcyr Carrasco e os atores trataram o amor entre o bronco Ramiro e o assumidíssimo Kelvinho fez com que a audiência torcesse pela união dos dois.
Além disso, havia ao menos outros 4 casais gays na novela, assumidos ou não. Um deles, que não era protagonista, foi mostrado com muita naturalidade — e aí está o grande mérito dessa abordagem. A personagem Luana (Valéria Barcellos) dona do cabaré, uma trans negra, namorou durante boa parte da novela com o advogado negro Rodrigo (Maicon Rodrigues). Sem estardalhaço, ajudaram muitos telespectadores a normalizar uma situação que em tempos de bolsonarismo poderia ser motivo de ataques tanto homofóbicos quanto racistas.
O último capítulo ainda teve uma surpresa positiva para o público: o casal protagonista, Aline e Caio, ofereceu ao cacique Jurecê, vivido por Daniel Munduruku, as terras que o vilão Antonio La Selva (Tony Ramos) invadiu e tomou dos indígenas. “Essas terras sempre foram suas”, disse a personagem Aline ao entregar o título de propriedade.
Em um país onde a luta pela manutenção ou recuperação das terras indígenas muitas vezes resulta em banho de sangue, é importante o simbolismo da cena para o telespectador médio, aquele que nos botecos ou na fila do banco repete o refrão de que “índio já tem terras demais”.
É certo que a linha editorial da Globo causou e causa muitos males ao país. Basta lembrar da construção do antipetismo; da idolatria dedicada a Sergio Moro na Lava Jato; da defesa de pautas econômicas que mantêm os privilégios dos mais ricos; da santificação do agro; da escolha por privilegiar a narrativa de Israel, na atual destruição que o governo de Netanyahu impõe a Gaza… e por aí vai.
Tanto nos programas do canal ICL no YouTube quanto no portal ICL Notícias, sobram críticas de nossos jornalistas e comentaristas a essa abordagem. Mas, se está longe de ser exemplar ao apontar as causas da desigualdade brasileira e até agir para mantê-la, é preciso reconhecer as qualidades da abordagem de combate à homofobia, ao racismo e à defesa dos povos indígenas.
Pode parecer pouco, mas basta imaginar o que seria da TV aberta brasileira, que ainda hipnotiza milhões de telespectadores pelo país, se a Globo de uma hora para outra deixasse de existir. Alguém imagina tratamento semelhante por parte da Record ou SBT?
Ninguém deve ter medo de meter o pau na Globo, mas também é importante reconhecer o que a emissora faz de bom, para que as práticas sejam mantidas.
Se tem uma coisa que o surgimento do bolsonarismo nos ensinou na prática é que nada é tão ruim que não possa piorar.
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